Reativar o passado, potencializar a história
Resenha do livro História potencial: desaprender o imperialismo de Ariella Aïsha Azoulay (Ubu Editora, 2024, trad. Célia Euvaldo)
“Eu adoraria ser parte de um grupo identitário. Quem me dera poder dizer que eu pertenço à ‘minha comunidade’”. É com essa frase de sinceridade pungente que Ariella Aïsha Azoulay recepciona seus leitores em História potencial. Originalmente publicado em inglês em 2019, este ensaio é fruto de dez anos de dedicação da autora e foi esperado ansiosamente pela comunidade que acompanha seu trabalho. O livro, que pode desde já ser considerado um clássico dos estudos decoloniais, chega ao Brasil neste mês, sendo não só a primeira publicação da autora no país, como também a sua estreia em língua portuguesa.
A intelectual judia palestina – como prefere ter a sua cidadania referenciada, em vez de israelense – transformou-se, com o andamento de suas pesquisas, de uma teórica da fotografia e da cultura visual a uma teórica política. Azoulay tem se dedicado nas últimas duas décadas a produzir o que alguns chamam de contra-arquivos, formas desobedientes e emancipadas de dar a ver os acontecimentos políticos e públicos, assim oferecendo aos fatos históricos uma visibilidade diferente daquela que o letramento e o arquivo imperial nos deram. Por meio de exposições e documentários, ao lado de ensaios e críticas, o trabalho de Azoulay procura combater a normalização do estado de muitos de nós como espectadores da violência e potencializar as histórias que abandonamos no passado como se já estivessem superadas e concluídas.

História potencial aparece no Brasil na tradução de Célia Euvaldo e em versão reduzida, com três dos sete capítulos originais, nos quais os leitores podem conhecer sobretudo como a autora elabora seu pensamento, colocando-se como personagem dele próprio. Dentre as principais ideias contidas no ensaio, a desaprendizagem aparece como uma das mais importantes. É a consequência do chamado de Azoulay a um comprometimento ético por parte de quem deseja exercer seu direito de não ser um perpetrador da violência. A proposta tenta responder à forma como seria possível, uma vez que se percebe em uma posicionalidade beneficiária dos movimentos de expropriação, reconhecer e negar esses privilégios e aliar-se de forma a produzir concidadania com aqueles que foram expropriados de seus mundos. E isso não significa criar “novas” práticas ou mesmo interpretações “alternativas” dos acontecimentos históricos, mas sim recuperar uma série de procedimentos de resistência que foram reduzidos a acontecimentos passados e tiveram então suas consequências para o presente despotencializadas.
A chegada desse texto nos permite responder com nitidez a certa antipatia conservadora e presente mesmo na crítica da esquerda, de que o giro decolonial é uma nova “onda”, uma nova tendência acadêmica desprovida de efeitos reais. O movimento é tudo menos uma manifestação “nova”. Pelo contrário, como sublinha Azoulay, existem “movimentos decoloniais” desde o exato instante em que o obturador imperial se fecha e se performa pela primeira vez o ato colonial. Reconhecer a potencialidade do passado e, em suas palavras, “desaprender o arquivo como um lugar é instrumental para se associar a outros que resistiram a ele”. A cada vez que se chama algo de “novo” se está destruindo um mundo anterior, todo o conhecimento e as formas de vida que o constituíam e que dele dependiam. Contra a pedagogia da novidade, base do imperialismo, seu argumento parte de uma comunidade de companheiros, nomeadamente Audre Lorde, Hannah Arendt, Saidiya Hartman, Sylvia Wynter e W. E. B. Du Bois.
Atualmente professora na Universidade de Brown, Estados Unidos, Azoulay atuou anteriormente na Universidade Bar-Ilan, em Tel Aviv, da qual foi desligada por causa das suas contínuas críticas às políticas de governo do Estado de Israel. Seu pensamento inicia em trabalhos anteriores (O contrato civil da fotografia e Imaginação civil) com uma crítica à história da fotografia, deslocando o seu início de 1826 para 1492, quando da invasão das Américas e da expulsão das comunidades judaico-muçulmanas do continente europeu. Para ela, mais do que uma simples metáfora, o obturador da câmera fotográfica opera como uma verdadeira sinédoque do imperialismo, revelando em um singelo ato a sua lógica essencial de que o mundo está cindido entre aqueles e aquilo que estariam à disposição para serem vistos e tomados e os que possuiriam o direito natural de ver e possuírem. O clique do obturador é a materialização de um mundo no qual temos objetos com muitos documentos (espólios da colonização que se tornaram patrimônios culturais em museus de arte) e pessoas sem documento (refugiados e imigrantes ilegais). E é exatamente esse mundo que precisamos urgentemente reparar.
Anelise De Carli é professora e pesquisadora da Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades (APPH). Doutora em Comunicação e Informação (UFRGS), atualmente desenvolve o projeto “A Terra e nós: educação, pesquisa e cidadania no Antropoceno” (PUC-Rio/CNPq).