Serão felizes as mães?
O dia das mães representa um momento chave da sociedade do espetáculo centrado na imagem das mercadorias. Mães felizes ganhando perfumes, chocolates, alimentos, cosméticos. Como se o presente fosse o único sentido objetivo de materialização do afeto condicionado pelo dinheiro
Dia das mães para quem?
A característica da sociedade em que vivemos é a de transformar tudo em mercadoria: desejos, sonhos, força de trabalho, tempo, cotidianidade. Para o dia, mercadoria, das mães, não é diferente. Propagandeia-se a ideia de mães, mulheres, belas, eternamente jovens em busca cotidiana de produções que freiem o efeito do tempo e do espaço sobre seus corpos-mentes.
Aquilo que o capital destrói – o corpo, os desejos, os sonhos –, ele retoma como possibilidade de venda na reconstrução artificial da aparência. Que contradição, mal-dita! O capital esmaga, esgota, explora e oprime a força de trabalho feminina e depois vende a ideia de melhoria da aparência ocultadora de diversas violências.
As marcas da indústria da “beleza” ocultam a verdadeira fundação do roubo do tempo e da violação da vida e da coisificação do corpo da mulher pelo poder indissociável do capital-patriarcado.
A era da indústria farmo-química se mescla com a da indústria cosmética. E nas propagandas mercantis, ser mãe aparece como uma imagem, fantasia nada real sobre nosso cotidiano histórico de mulheres trabalhadoras. Juntas, as indústrias do espetáculo criam um movimento contínuo de produção da ideia de beleza e do sentir-se mulher e mães, como dever ser.
Na venda fantasiosa da eterna juventude estas indústrias produzem múltiplas drogas: para as rugas; para o sono; para o emagrecimento; para dormir. Ao despertar, drogas para a aparência do cabelo, do corpo, da alma. Legítimas e legais segundo o Estado de direito do capital, essas drogas ditam efeitos devastadores sobre a psiquê social com base no dever ser mulher, mãe, tecida pelo manto da compra e venda.
Ao longo da breve história do século XXI a sociedade do espetáculo consuma um sentido sobre a mulher e o ser mãe, que reforça estereótipos sociais:
– Ser mãe na venda da força de trabalho a preços cada vez mais baixos e, em muitos casos, sem pagamento algum;
– Ser mãe no abrir mão do cotidiano afetivo por conta das múltiplas dívidas a serem pagas em amplas prestações realizadas no teor usurpador dos cartões de créditos;
– Ser mãe na responsabilidade de pagar cada vez mais alto o preço de não poder ser, nem humano, muito menos mãe, mulher, companheira, militante em uma sociedade que rouba tempo, ainda quando o define como livre.
Estes e outros estereótipos vinculados ao dever ser sobre as coisas interagem na nossa relação com o mundo, como mulheres.
O dia das mães representa um momento chave da sociedade do espetáculo centrado na imagem das mercadorias. Mães felizes ganhando perfumes, chocolates, alimentos, cosméticos. Como se o presente fosse o único sentido objetivo de materialização do afeto condicionado pelo dinheiro.
O festejo na forma da compra-venda maquia, fantasia, esconde o real sentido cotidiano do ser mulher em construção, em relação com os demais seres e o meio em que se vive. Os donos das mercadorias criam embalagens cada vez mais difíceis de serem retiradas dado o peso de chumbo cristalizado na ode do consumo e do presente mercantil. Abrem-se as embalagens de presentes, mas não se veem as violências materializadas nos objetos dados como presentes.
Entre o ser mãe e o dever ser sobre as mães!
Na forma-conteúdo dos presentes mercantis, o ser mãe, do dia das mães atual, representa a face mais triste e bárbara da sociedade em que vivemos. Músicas, fotos, imagens revelam um processo que nada tem a ver com a substância mesma do permanente processo de aprendizagem sobre o ser mãe em uma sociedade que trata os seres como coisas, ao mesmo tempo que transforma a coisa em ser.
Entre o ser e o dever ser, nossa transformação cotidiana em mercadorias apropriadas pelos donos privados dos meios de produção e de projeção do prazer, cria angústias e depressões. Afinal, há uma distância enorme entre a felicidade artificial, vendida como possível e a realidade de exclusão concreta na qual como mães trabalhadoras lutamos para sobreviver.
A beleza do ato educativo de construir uma relação de confiança, de troca não mercantil mútua entre mães-filhos-filhas é substituída pela vacina da cura do presente mercantil. Mamãe e celular; mamãe e panelas; mamãe e cobertores; mamãe e indústria da beleza.
Toda essa fantasia tira do foco e foco real: ser com a outra e o outro como essência produtiva do ser mais, próprio à condição humana. Isto aponta a diferença substantiva com a sociedade mercantil centrada no ter para ou sobre o outro, como forma como representação do afeto por alguém.
O dia das mães na fantasia da felicidade vendida nos shoppings é como a vacina da gripe. Nem cura, nem previne. Cria uma ideia de proteção que logo se desmancha no ar, tamanha as múltiplas drogas cotidianas consumidas pela boca e pelos poros, dada a sociedade poluída e poluidora na qual vivemos.
A luta das mães é histórica e seu dia é toda noite-dia. Porque ser mãe é ficar acordada à espera dos outros, não dormir para cuidar dos outros, angustiar-se por administrar a falta de seu tempo devido ao tempo que entrega aos outros.
Esse roubo do tempo é explicitado no mundo do trabalho real em que quase 600 milhões de mulheres em idade ativa trabalham por conta própria, segundo a OIT (2015); enquanto outras 200 milhões com mais de 60 anos de idade não possuem nenhum tipo de ingresso que lhes garanta sobreviver.
O patriarcado na exploração das mães!
Trabalhadoras das fábricas, do campo, das casas, das ruas, nós mulheres compomos a totalidade do movimento contínuo e perverso da superexploração da força de nossos trabalhos. Ganhamos menos, trabalhamos mais e somos, no entanto, responsabilizadas socialmente por todo o cuidado mercantil que nos remete a obrigações legais nem sempre legítimas sobre nossos filhos.
Porque não é legítima a sociedade que pune a mulher pela ideia que projeta sobre o sentido do não cuidar, enquanto libera o pai desse compromisso social. Uma sociedade ancorada em direitos e deveres desiguais, nem cuida, nem protege. Exclui, amarra, condiciona, mata. E mata essencialmente em vida mães no seu desejo real de cuidar-cultivar filhos e filhas em comunidade. O ter condicionador do ser mãe se vincula, assim, ao ter a obrigação jurídica pelos seus, em especial quando são menores de idade.
Dessa matriz, econômica, social, jurídica e política do capital, constitui-se uma cultura muito dura e perversa sobre o ter-dever ser mulher-mãe. Esse peso, essa obrigação, esse preço sobre o cuidar, puxa tanto para baixo, que a mulher é conduzida a necessidades que não foram criadas por ela. Racionalizar sobre ter ou não ter filhos; tirar ou manter a gravidez, por exemplo, passa a ser algo cotidiano em uma sociedade ancorada nos custos, riscos do viver.
No Brasil, 4,7 milhões de mulheres de 18 a 39 anos de idade, alfabetizadas e residentes no perímetro urbano, já haviam realizado ao menos um aborto ao longo de suas vidas (2016). Destas, 48% abortaram por medicamentos e 50% delas precisou de internação para algum tipo de cuidado posterior.
O aborto no Brasil é ilegal. Mas seria ilegítimo? Penso que não, dado que é real e cotidiano. O que legitima a prática é a construção sócio-histórica em si mesma sobre os papéis, as representações sociais e a dificuldade de responder a elas, em uma sociedade ancorada na exclusão que inclui desconstruindo os seres sociais.
Frente a dita realidade, a manutenção da ilegalidade reflete a negação do ser à mulher pela estrutura capital-patriarcado e do racismo no Brasil. A legalidade demarca a legitimidade de poder optar em uma sociedade que pune a mulher sobre seus atos, quando a escraviza e condiciona a uma situação de vida miserável, cujas obrigações são, ao mesmo tempo, impostas e inviabilizadas.
No peso das escolhas mediadas pelas necessidades primárias da sobrevivência, a sociedade de classes define regras diferentes para as mulheres da classe alta que abortam e as mulheres negras, pardas e brancas de classe baixa que o fazem. Entre as primeiras e as segundas, as razões são muito distintas.
Enquanto as mulheres da classe econômica mais forte não têm o problema da sobrevivência como o centro de suas decisões, as da classe trabalhadora o tem. Este não é o único elemento, mas é um dos principais.
O nível de exploração da nossa força de trabalho feminina nos remete à lógica atual do difícil cenário de ser mãe, sem ter condições de vender nosso suor diário a um preço que nos permita cuidar-cultivar de nossos demais seres em comunidade. Isso inclui nossos filhos e filhas do corpo e da vida. Filhas e filhos do corpo gerados por escolha, ou não. Filhos e filhas da vida, constituídos por uma opção política ou afetiva, ou do encontro das duas.
Segundo a Unicef, existem 3,7 milhões de crianças órfãs de pai ou de mãe no Brasil. São 6,5 mil crianças no cadastro nacional de adoção, para 35 mil famílias na lista de espera (Cadastro Nacional de Adoção, 2015). Temos mais de 20 mil crianças que vivem em abrigos fora da relação familiar tradicional e nuclear. A questão é: de quem é a culpa? Da mãe que os abandonou? Ou de um Estado de direito em que a classe dominante criou um modo de morte em vida, que nos exige optar sem termos elementos concretos de escolhas sobre ditas situações?
É a engrenagem de como funciona a sociedade que nos permite entender o tema. E não as escolhas individuais. No entanto, na sociedade ancorada no Estado de direito burguês, se pune ou se endeusa indivíduos. O direito penal, civil, criminal, ganha hegemonia frente aos direitos social e humano.
O dia das mães e dos pais, a páscoa e o natal, junto ao das crianças e ao ano novo, são datas mercantis. Quem mais ou menos comemora é o mercado. Situação que deveria nos permitir abrir passos à reflexão, sobre os sentidos do viver próprios de uma sociedade que insiste em propagar a compra e a venda como caminho de via única inquestionável.
Lutar pela beleza e pelo direito de ser, ou não, mãe!
Ser mãe é uma construção social e histórica que depende dos textos próprios do contexto em que se vive. Ter que ser mãe, no particular modo de produção capitalista, foi uma longa construção que aprisionou nosso ser mulher, violou nossos direitos e desejos e nos condicionou a um mecanismo enfermo de obrigações substitutas do prazer.
Trazer à cena as mães-mulheres da nossa recente história exige dizer o que mudou no sentido do cuidar, do querer e do poder. No poder do capital se pode cada vez menos ser mãe, ainda que se deva, cada vez mais, desejar ser mãe no universo das mercadorias.
Estamos em tempos de golpes tão presentes, que discutimos pouco os golpes estruturais da história do capital. Entre eles está o golpe sobre o corpo, a mente, o desejo das mulheres.
O capitalismo rouba tempo; rouba realização do que como mulheres e homens produzimos no trabalho; rouba vida, e institui sonhos predadores exteriores à essência humana do cultivo-cuidado.
O dia das mães é todo dia. E todo dia a jornada das mães trabalhadoras é longo e pesado. Nos remete a intensas e longas jornadas de trabalho, em que a sobrecarga de trabalho se entranha no afeto, promove o cansaço e institui as obrigações sobre os abraços e beijos cotidianos.
No dia a dia das mães trabalhadoras precisamos de mais encontros, menos opressão; de mais espaço, menos invasão midiática; de resgatar o ser com outros, nós, em uma sociedade que nos ancorou num eu que não nos permite ver e sermos vistas. Dias felizes para as mães trabalhadoras só existem se forem o avesso do dia das mães mercantil. Felizes as mães trabalhadoras que lutam com outras mulheres e homens na construção de outro mundo necessário e possível.
Entre a felicidade do presente e a felicidade presente há uma distância enorme. A primeira é centrada no preço, a segunda no apreço. Que o presente dia seja dia de encontro, com as pessoas presentes. De preferência sem presentes para além de seus corpos, afetos, palavras e silêncios.
Para sermos felizes precisamos lutar e construir outro sentido de vida para além da sociedade do espetáculo, permitindo-nos sermos, ou não, mães. Necessitamos, na luta, construir novos momentos em que não choraremos mais nossos filhos e/ou de nossas companheiras, mortos nas praças, nas escolas, nas ruas, pela perversa situação de guerra na qual fomos obrigatoriamente inseridas. Curuguaty, Ayotzinapa, Mato Grosso, Cabula e toda a geografia marcada pelo sangue das mortes de filhos e filhas de nossas mulheres-mães da classe trabalhadora.
Basta de tanta orfandade criminosa contra as mães trabalhadoras reféns de toda a estrutura do capital. Basta de filhos e das filhas mortos e machucados pela sanguinária farpa do capital. Mãe feliz é a que volta para casa e tem seus e os das outras em segurança. Mães ou filhas que, sendo companheiras, só podem dormir de verdade se estão seguras de que o dia valeu a pena por termos conseguido construir uma sociedade de mulheres e homens livres, nem exploradas, nem oprimidas.
*Roberta Traspadini, mãe do Davi, é professora do curso de Relações Internacionais e integração da UNILA e professora militante da ENFF.