Sobre (supostos) deslizes diplomáticos e raison d’etat
O discurso diplomático mascara os interesses materiais de cada país, e suas eventuais contradições com a prática são um sintoma disso
A propósito das supostas escorregadas diplomáticas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, trago novamente à baila o ponto de vista do realismo internacional, o que – alerto – dificilmente redundará em qualquer forma de “música para os ouvidos”.
Considerando-se que o sistema interestatal é formado por Estados que almejam objetivos egoístas, em uma espécie de jogo de “soma-zero”, qualquer ato ou fala, na diplomacia, deve ser pensado visando ao interesse nacional.
A nação que não seguir a cartilha da raison d’etat e, ao contrário, orientar-se por um viés ideológico, axiológico ou religioso, tende, no final das contas, a perder condições de inserção autônoma no sistema internacional, pondo em risco sua soberania.
Assim, cumpre perguntar, por exemplo, o que o Brasil teria a ganhar ao criticar publicamente o regime do presidente russo, Vladimir Putin, pela recente morte de seu opositor Alexei Navalny?
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Isto é, a discussão sobre se é preciso condenar o que pode ter sido um ato criminoso e uma afronta aos direitos humanos por parte de Putin é secundária, uma vez que a dimensão ética e moral deve ser suplantada pelo interesse nacional.
Ainda em relação a esse caso, é natural que os EUA – que têm na Rússia seu principal oponente geopolítico, ao lado da China – tenham prontamente tachado a morte de Navalny como “mais um assassinato a mando de Putin”.
Mas é importante compreender que os norte-americanos não assumem tal postura pelo bem geral da democracia e dos direitos humanos. Cada fala de Joe Biden é pensada em conformidade com sua posição atual e próximos movimentos no tabuleiro geopolítico.
De outra maneira, como seria possível os EUA manterem um condomínio petrolífero e militar de quase 80 anos com a Arábia Saudita, uma ditadura que, em 2018, mandou esquartejar um jornalista crítico do regime?
Ou como, em plena Guerra Fria, na virada da década de 1960 para 1970, os norte-americanos poderiam ter se aproximado da China comunista para enquadrar a União Soviética, em um movimento que ficou conhecido como diplomacia triangular?
Ou ainda, há poucos anos, como poderia seu então presidente Donald Trump ter apertado as mãos do ditador norte-coreano Kim Jong-un?
Essencialmente, o discurso diplomático mascara os interesses materiais de cada país, e suas eventuais contradições com a prática são um sintoma disso.
O presidente Lula foi duramente criticado por não ter emitido um posicionamento mais duro em relação à Rússia no que tange à guerra na Ucrânia e é recorrentemente reprovado por não condenar, ativamente, regimes autoritários latino-americanos como os da Venezuela e Nicarágua.
Diferentemente do gigante euroasiático, os últimos dois configuram, possivelmente, casos em que o Brasil pode pressionar, utilizando seu soft e hard power, para que tais governos pisem no freio nas transgressões aos direitos humanos.
Mas, novamente, tal atitude deve ser cuidadosamente pensada a fim de não prejudicar o interesse nacional brasileiro, sobretudo no caso da Venezuela, com quem temos uma fronteira e relações socioeconômicas relevantes.
Neste exato momento, por sinal, há testes sendo conduzidos em uma linha de transmissão que voltará a trazer energia de uma hidrelétrica venezuelana para Roraima, o único estado do país ainda desconectado da rede elétrica nacional e que depende térmicas caras, cuja conta é rateada por todos os consumidores brasileiros por meio da Conta de Consumo de Combustíveis (CCC).
Nos últimos dias, Lula tem sido bombardeado por ter comparado as ações de Israel na Palestina ao Holocausto.
Parece-me que houve, aí, um erro de cálculo do mandatário brasileiro, que, numa linguagem popular, teria “arrumado sarna para se coçar” ao não se limitar a classificar o caso como genocídio – o que já é uma crítica bastante forte.
O caso pode denotar uma certa falta de tato da diplomacia brasileira e/ou de Lula não apenas quando fez referência ao massacre dos judeus pela Alemanha nazista como quando decidiu comprar briga com um Estado Nacional que é armado pela potência hegemônica global.
No entanto, insisto que o que deveria estar sendo avaliado, em última instância, não é se Lula acertou ou errou ao fazer tal comparação, mas suas potenciais implicações ao interesse nacional do Brasil.
João Montenegro é mestre e doutorando em Economia Política Internacional pelo Instituto de Economia da UFRJ.