Tendência global? Mais um candidato meme na política
Em ano eleitoral argentino, discursos ultradireitistas ecoam como um coro de desinformação, alimentando-se da retórica da “liberdade” e promessas simplistas que supostamente resgatarão o país da crise
O triunfo de Javier Milei nas eleições primárias da Argentina (PASO), em agosto de 2023, é mais um fenômeno da ascensão de discursos que corroem a democracia. Neste caso, a vitória inesperada do candidato da aliança “Liberdade Avança” (Liberdad Avanza) indica singularidades de um contexto complexo: anseios de uma sociedade fragmentada, atingida pela crise econômica e pela pandemia, que expressa a sua raiva, mas também expressa um desejo de uma reinicialização profunda, uma vontade de choque.
A escalada (des)informacional da extrema direita na era da pós-verdade é um movimento em ascensão no mundo. No Brasil, o êxito de Jair Bolsonaro enquadra-se em um contexto internacional de crescimento da extrema-direita, cujos marcos incluem o referendo do Brexit e a vitória de Trump, em 2016. Um traço importante dessas transformações do contexto do Capitalismo Tardio é – como nos dizem Habermas (1948; 1987), Harvey (1996) e Giddens (1990) – que essas transformações são em grande parte transformações na linguagem e no discurso.
As estratégias discursivas para disputa de uma hegemonia ficam ainda mais exacerbadas em períodos eleitorais. Na Argentina, o candidato da extrema direita – um economista liberal que tem como assessora sua irmã, a quem chama de “O chefe / El jefe” (no masculino, pois não pode assumir a potência da figura feminina) – ladra por mudança ao proclamar uma antipolítica, se convertendo em um caricato personagem midiático
Ele mobiliza multidões com oratória agressiva e encarna a necessidade e a esperança de construir um outro sistema ao povo argentino, que lhes traga glória e progresso. A liberdade de expressão é usada como escudo para agredir minorias e duvidar do quão cruel foi o terrorismo do Estado na ditadura argentina, que conta com mais de 30.000 desaparecidos.
Como aconteceu em diversas ocasiões durante debates televisivos, sua exacerbação (e fúria) é aplaudida e viralizada sempre que é contrariado. Como um meme ambulante produto do neoliberalismo, que flerta com emoções para gerar engajamento, o candidato da coligação de ultradireita constrói seu personagem revestido por discursos sedutores de meritocracia. Reforçando a opinião de que a causa principal da crise vivida na Argentina é a dívida histórica ao FMI – culpa das políticas de equidade social – e que, para ser resolvida, cada pessoa pode se esforçar e fazer por si só, Milei tem os jovens como maior parte do seu eleitorado. Dessa forma, infla os discursos de ódio para criar um inimigo – o peronismo de esquerda – que precisa ser aniquilado.

Desde a crise de 2008, que mostrou que o capitalismo permanece profundamente instável e incompatível com a democracia, o movimento de extrema-direita tem crescido em grande parte do mundo e, desses movimentos, se exacerbam os nacionalismos. A América Latina não ficou isenta do ultranacionalismo difundido pelas redes sociais, e o próprio crescimento da coligação de Javier Milei tem relação com a ascensão de redes como Twitter e Youtube. Nas plataformas de mídias sociais, a aparente banalidade dos discursos repletos de ofensas é um reflexo da intensificação da violência na sociedade, que, em grande medida, se originou das desigualdades sociais perpetuadas pelas políticas neoliberais. Algumas pessoas recorrem ao discurso de ódio estrategicamente para dividir a população em benefício de agendas políticas específicas. Isso também facilita o apoio às notícias falsas, uma vez que a validade de uma afirmação não é determinada pela lógica, mas sim pelo que as pessoas sentem e acreditam.
Se o algoritmo das redes sociais é feito para oferecer ao usuário qualquer conteúdo capaz de atraí-lo com maior frequência e por mais tempo à plataforma, os produtores de conteúdo de desinformação se favorecem ao sustentar qualquer posição, razoável ou absurda, desde que intercepte as aspirações e os medos dos eleitores. Não é por menos que o caricato personagem de Javier Milei traz respostas simples para resolver problemas complexos. Exemplo disso é quando ele defende sua proposta de dolarizar a Argentina, indo contra a maioria dos economistas. Outra proposta absurda para diminuir os gastos é a eliminação de ministérios importantes, como o da Ciência, Tecnologia e Inovação, pois, segundo ele, a pesquisa só serve se for privatizada.
Outro exemplo recente no contexto argentino acerca de como as emoções são canalizadas pela extrema direita na campanha de desinformação foi a suposta onda de saques em várias províncias do país, em que inúmeros vídeos falsos foram difundidos em redes sociais engradecendo a situação de saques isolados. Movimentos que parecem organizados para alarmar a população e, assim, sensibilizar a segunda principal pauta de preocupação dos eleitores – segurança, atrás apenas da inflação – para que o discurso armamentista produzido pelo candidato ganhe mais força.
É nesse contexto que o século XXI se vê marcado: discursos disseminados em redes sociais com graus variados de verdade sustentam uma hegemonia, o status quo, provocando um deslocamento dos sujeitos e, consequentemente, das narrativas, da realidade sócio-histórica na qual estão inseridos. Com isso, nega-se as contradições próprias dos processos sociais que se desenvolvem sob a égide da acumulação capitalista, fortalecendo apreensões fragmentárias e apolíticas da realidade.
Nesse cenário, presencia-se o aprofundamento de problemas sociais na vida de imensos contingentes populacionais ao redor do mundo com a desregulamentação das legislações trabalhistas, a intensificação da jornada de trabalho, a superexploração da força de trabalho, as políticas públicas cada vez mais residuais e focalizadas, a destruição de recursos naturais. Essa realidade se apresenta de maneira diversa ao redor do mundo, a partir das particularidades sócio-históricas de cada país e região e, em especial, na América Latina e Caribe, onde um grande contingente populacional convive com uma brutal desigualdade social.
A América Latina assume traços particulares do desenvolvimento do capitalismo. A dependência retrata a especificidade do capitalismo sui generis latino-americano, subordinado à dinâmica do movimento do capital em âmbito mundial. O desenvolvimento do capitalismo no continente parte de condições estruturais desfavoráveis, sobretudo de duas raízes indissociáveis entre si: a terra fecunda e a expressiva força de trabalho disponível. Como defende Transpadini, em sua tese intitulada “Questão agrária, imperialismo e dependência na América Latina”, são estas duas variáveis que explicam, historicamente, a trajetória da ocupação do continente latino-americano desde a exploração colonial europeia, passando pelas diferentes fases do desenvolvimento do capitalismo e chegando até os dias atuais.
Em 22 de outubro os argentinos votarão, nas eleições gerais, para escolha de presidente que assume em 10 de dezembro. Segundo a projeção realizada pela empresa Analogías, entre 21 e 23 de agosto, Milei subiu dois pontos desde as eleições primárias, estando na frente com 32,1% dos votos; em seguida, com 26,8%, está Sergio Massa, ministro da Economia e candidato pela coligação do oficialismo “União pela Pátria” mantendo quase o mesmo alcance de votação das primárias; e, em terceiro, a ex-ministra de Segurança do governo Macri com 20,9%, tendo uma queda desde as primárias.
Há aqueles que assumem que a Argentina está para entrar em uma nova fase que, depois de longas décadas de hegemonia populista, se volta para o outro extremo: a adoção de um Estado minimalista e a aceitação da lógica capitalista. Será que a Argentina está passando por uma significativa mudança cultural, na qual a maioria, cansada das promessas do peronismo e da direita tradicional, se levanta contra “a casta”, clamando por, nas palavras de Milei, “la liberdad, carajo”?
Alguns suspeitam que, devido a sua abordagem agressiva e pelas inúmeras falas, tanto do líder libertário como de sua vice Victoria Villaruel sobre a negação da existência do Terrorismo de Estado durante a última ditadura cívica-militar, não hesitaria em estabelecer um governo tão autoritário quanto o de Juan Domingo Perón. Outros acreditam que, caso vença as eleições presidenciais, ele será forçado a colaborar com pessoas mais moderadas que compartilham sua visão de que a Argentina precisa seguir o exemplo de países prósperos e democráticos que, sem exceção, adotam o sistema capitalista para superar os desafios que enfrentam.
Pode ser que a justificativa predominante para votar em Milei seja a raiva. Sentimento que o candidato, em benefício do algoritmo de redes sociais, explora em seus discursos com frases de efeito, soluções “simples” para problemas complexos, desejo de recriar a história homenageando o Governo Ditatorial e reforçando o inimigo a ser exterminado.
Mas, culpa das big techs ou não, o fato é que, nas últimas eleições na Argentina, o povo clamou por mudanças. Do peronismo ao macrismo. Do macrismo ao peronismo. Todos que passaram não lograram, porém, controlar a tão insistente inflação, o mais conhecido problema da economia argentina. Os jovens, principal público eleitor da extrema-direita, desacreditados na política que até o momento vivenciaram, parecem ter elegido sua bala de prata: um candidato meme que condensa suas raivas e que diz, de forma simplista, ter soluções para todos os problemas.
Quando é a juventude que clama pela chegada da direita mais extrema, é de se preocupar ainda mais. Filhos da eterna crise financeira, parecem ter se desiludido com as forças políticas tradicionais argentinas. Respostas fáceis? Sim, por que não? A moda agora é viver mal-informado em meio ao excesso de informações. A extrema direita, então, virou a resposta fácil. Devemos culpar os jovens? Talvez, mas e quem os manipulam? O Vale do Silício é logo ali.
Sabrine Weber é doutoranda em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisa desinformação como ferramenta política da extrema direita em períodos eleitorais. Desenvolve a pesquisa em parceria com a Universidade de Buenos Aires, na Argentina, onde vive atualmente. E-mail: [email protected].
Artigo esclarecedor e bem construído favorecendo a leitura. Parabéns a autora.