Transições de carreira das mulheres cientistas
Reflexão para incluir na formulação de políticas públicas voltadas para meninas e mulheres na ciência
Em uma busca rápida na internet, as motivações por trás da decisão de uma transição de carreira são reduzidas a frases genéricas como “insatisfação com o status quo” e vêm acompanhadas de manuais para equilíbrio emocional, reserva financeira e adaptação ao mercado de trabalho do século XXI, que está cada vez mais instável.
Mas, calma!
A transição de carreira passa por uma espécie de luto. E, para que não se transforme em uma patologia, é necessário verbalizar esse mal-estar e, aos poucos, ir reelaborando, dando um novo sentido e seguindo o caminho. Além disso, o mal-estar, quando o tornamos visível, escancarado, nos permite perceber que não é algo individual. Nos dando a possibilidade de transformá-lo em uma bandeira de luta coletiva, exigir intervenções governamentais e romper com um sistema neoliberal que insiste em impor as violências estruturais como problemas individuais.
Neste primeiro ensaio, que marca minha estreia no Le Monde Diplomatique, aproveito o mês do Dia Internacional da Mulher e o recente Dia Internacional de Meninas e Mulheres na Ciência (11 de fevereiro) para questionar: As mulheres cientistas estão realizando transições de carreira por escolha ou, em sua maioria, como uma resposta à exaustão e à falta de reconhecimento em seus campos de atuação?

Deixe-me sublinhar um pouco o contexto:
1° Ser cientista no Brasil está diretamente ligado a estar na posição de professora universitária ou pós-graduanda vinculada a um laboratório de pesquisa nas instituições universitárias ou em poucos institutos privados de renome, com acesso restrito. No entanto, o sistema científico, que depende desses pós-graduandos para sua produção, não os reconhece como profissionais, tratando-os apenas como estudantes que “se aperfeiçoam”. Além disso, nem todos conseguem garantir uma bolsa de pesquisa, que são defasadas, sem reajustes anuais, e vistas como auxílios assistencialistas, não como remuneração por trabalho especializado. Não há vínculo empregatício, 13º, férias ou FGTS. Para grupos vulnerabilizados, como mulheres, negras, trans e periféricas, que já enfrentam barreiras para ingressar na ciência são dados: a “dupla, tripla, quarta jornada de trabalho” e o impacto na sua saúde mental e física pela falta de perspectiva de empregabilidade cientifica, financeira e reconhecimento profissional.
2° Temos a herança do colonialismo, que não apenas dominou territórios, mas também dividiu e hierarquizou os saberes, colocando as ciências exatas e biológicas como mais valiosas que as ciências sociais e humanas, além de criar um imaginário sobre o que é ser cientista. Os resquícios dessa divisão são visíveis a todo momento, como nas campanhas para incentivar meninas a entrarem na ciência, que as retratam no laboratório, usando jalecos brancos, óculos de proteção e são rodeadas por equipamentos, ou, mais recentemente, estão diante de redes e computadores. Esse imaginário coletivo contribui para a permanente desvalorização e marginalização das ciências sociais e humanas.
3° Embora não haja uma exclusão explícita de indivíduos nas carreiras científicas diversas formas de coerção – como “piadinhas”, desqualificação intelectual, preterimento na alocação de bolsas, desvalorização de campos de pesquisa, abuso de poder, assédio moral e sexual, coerção psicológica e sabotagem profissional – são praticadas de maneira a dificultar a denúncia ou a responsabilização dos envolvidos. As sobreviventes dessas violências, em sua maioria mulheres e membros de grupos marginalizados, enfrentam o desafio de lidar com essas questões enquanto tentam avançar em suas carreiras no ambiente científico.
Dito isso, podemos nos perguntar novamente: As mulheres cientistas estão realizando transições de carreira por escolha ou, em sua maioria, como uma resposta à exaustão e à falta de reconhecimento em seus campos de atuação?
É altamente possível que as mulheres cientistas (e outros grupos vulnerabilizados) estejam realizando a transição de carreira como um ato de revolta contra padrões institucionais que adoecem e exaurem. E, o que muitas vezes é interpretado como uma escolha individual tem como impulsionadora a exploração, expropriação, espoliação e desigualdades que permeiam o campo científico brasileiro.
Mas, sejamos uma “realista esperançosa”, já diria Ariano Suassuna
Se é verdade que nossas antepassadas enfrentaram um cenário ainda mais desafiador, também é verdade que não podemos continuar a usar isso como justificativa para um ambiente que nos adoece e esperar o aumento da diversidade na ciência. Por isso, considero um salto importantíssimo a criação do Comitê Permanente de Ações Estratégicas e Políticas para Equidade de Gênero da CAPES e a Comissão Permanente de Equidade, Diversidade e Inclusão da FAPERJ.
Por fim, meu objetivo com este ensaio não foi desmotivar meninas e mulheres a seguir na ciência; pelo contrário, quero que este ensaio nos leve a refletir sobre o mal-estar causados pelas violências estruturais, impulsionar ações e dizer, a quem se identificou: “Não foi um erro você ter se dedicado anos à ciência. E seja qual for sua decisão, há coragem, sabedoria e força nela!”
Raquel Isidoro é Analista de políticas de gênero e das dinâmicas de poder na ciência e tecnologia, pesquisadora no Laboratório Rastro IPPUR/UFRJ e doutoranda em Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional na UFRJ. Possui mestrado em Sociologia e graduação em Ciências Sociais pela UFF.