Violações ao direito à comunicação limitam a luta por justiça socioambiental
Participação social é retomada com restrições no primeiro ano de governo Lula, e falta de acesso à informação nos estados dificulta a ação dos movimentos sociais. Confira em novo artigo do especial “Algo de novo sob o sol? Direito à Comunicação no primeiro ano do atual governo Lula”
“A justiça socioambiental é o pilar que sustenta a perspectiva do acesso justo de todas as pessoas aos recursos naturais e aos benefícios (e ônus) decorrentes do processo de urbanização nas cidades, independente de raça, etnia, gênero ou classe social.” A afirmação é de André Araripe, educador da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – Fase Pernambuco. Para outro militante popular, Cícero Félix, que atua como coordenador nacional da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), a luta pela justiça socioambiental passa pela crítica aos sistemas de governo e econômicos, em todo o mundo, pautados pela lógica capitalista. “O capitalismo está se adaptando às condições de emergência climática a partir do chamado capitalismo verde, priorizando, mais uma vez, o lucro à custa das vidas das populações e das vidas dos biomas, das diversas naturezas. Não podemos nos iludir que dentro do sistema vamos promover justiça socioambiental. Não se trata de ser contra os empresários A, B e C. Trata-se de chamar atenção para que a humanidade reveja seus sistemas de governança e econômicos”, diz.
As perspectivas de André e Cícero são fundamentais, sobretudo num país, como é o caso do Brasil, profundamente marcado por desigualdades e por graves injustiças socioambientais – da ausência de saneamento adequado à ocupação de territórios urbanos e rurais por empreendimentos que desconsideram as vidas e vozes que lá já existiam –, que se articulam com violações ao direito à comunicação e com a negação de outros direitos. Especificamente sobre o Semiárido do país, Cícero alerta que “seus diversos povos e florestas têm sido ameaçados pelos grandes empreendimentos do agronegócio, da transição energética e da mineração”.
Na região amazônica, a situação não é diferente. Os povos indígenas têm sofrido o impacto das velhas investidas também do agronegócio e, agora, dos agentes do novo capitalismo verde do mercado de carbono. “Os projetos desenvolvimentistas de construção de hidrelétricas, hidrovias, portos, ferrovias, rodovias, geração de energia eólica, linhas de transmissão de alta tensão elétrica, extração de petróleo e gás, dentre outros, em sua maioria, expulsam os povos de seus territórios, dividem comunidades, estabelecem o individualismo, aumentam a violência e deixam os povos em estado de miserabilidade, perdendo o seu bem viver com a natureza e seus pares”, destaca Ivanilda Santos, secretária adjunta do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
A mídia, o agro e o Estado
Diferentes pesquisas, a exemplo do Monitoramento da Propriedade da Mídia e da Vozes Silenciadas Energias Limpas: o que a mídia silencia?, têm demonstrado que esses megaprojetos criticados por Cícero e Ivanilda têm como um aliado estratégico – inclusive no sentido de tentar convencer a população da necessidade de sua construção – o setor privado-comercial das comunicações. “É por um viés ideológico dos próprios donos de mídia, que vem da linha editorial desses veículos. E pelos anúncios que vêm do setor do agronegócio. Então, tem essa participação muito direta, essa dependência direta dessa grana. Consequentemente [o setor] vai pagar, em muitos casos, publieditoriais, que se assemelham a reportagens. Isso tem sido bastante comum em alguns portais de mídia online”, explica Bruno Bassi, coordenador de projetos do observatório De Olho nos Ruralistas.
Essa simbiose entre mídia e empreendimentos que promovem ou agravam injustiças socioambientais é possível também pela permissividade do Estado brasileiro. Ainda que com algumas nuances, o fato é que, governo a governo, independente do matiz ideológico, o setor do agronegócio, por exemplo, exerce poder de influência sobre as ações do Executivo federal, especialmente no tocante ao acesso à informação e à participação social.
Por exemplo: mesmo que não com a mesma intensidade que no governo Bolsonaro, a restrição a dados públicos não foi uma prática extinta no primeiro ano do governo Lula; a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) ainda é utilizada como argumento para restringir acesso a muitas informações de interesse da sociedade, a exemplo do bloqueio que persiste aos dados sobre titularidade de terras do Sistema Nacional de Cadastro Rural do Sistema de Gestão Fundiária. Para o coordenador do De Olho nos Ruralistas, que teve vários pedidos de acesso à informação negados, existe ainda “uma herança que eu acho que precisa ser tratada com seriedade, já que a gente está falando de iniciativas de jornalismo de pesquisa que necessitam desses dados para fazer o seu trabalho”.
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Outro exemplo é a base do Cadastro Ambiental Rural (CAR) que, desde 2020, passa por atualização, não permitindo o acesso a muitos dados. Avaliações anteriores sobre a transparência das informações ambientais na Amazônia Legal, realizadas pelo Instituto Centro e Vida (ICV), já apresentavam a baixa adoção da Lei de Acesso à Informação nos estados amazônicos e a insuficiente disponibilização de dados, principalmente em âmbito estadual. Vale frisar que, em relação a dados públicos ambientais, mesmo antes da LAI, a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) e a Lei da Transparência Ambiental (Lei nº 10.650/2003) já versavam sobre a sua disponibilização à sociedade. Na esfera federal, por mais que ainda haja certa dificuldade e herança de gestões anteriores em relação à transparência, se cumpre a LAI nos órgãos ambientais.
Edilene Fernandes, coordenadora do Observa-MT, uma rede de incidência política composta por organizações que defendem o desenvolvimento sustentável no Mato Grosso, exemplifica o desafio no estado: “Dados de regularização fundiária são uma caixa preta, você não consegue saber nada no estado. Dados sobre a questão de produção de gado GTA [Guia de Trânsito Animal, que permite o rastreio dos rebanhos], você não tem ideia, não há qualquer tipo de transparência. E até mesmo você pedindo acesso à informação, ela é negada. Usa-se, depois da Lei de Proteção de Dados Pessoais, uma desculpa para não fornecer dados públicos”.
O problema maior dessa falta de acesso é que a sociedade civil organizada fica sem subsídios para acompanhar e argumentar sobre os projetos de lei que entram em discussão e aprovação no Legislativo Estadual. A Lei da Pesca (nº12.197/2023) é um espelho desse cenário. Conhecida também como Cota Zero, proíbe, pelo período de cinco anos, o transporte, comércio e armazenamento de peixes dos rios no Mato Grosso a partir de janeiro de 2024. “A Lei da Pesca foi aprovada com substitutivo, e você não tinha acesso ao substitutivo, nem ao parecer da comissão que o aprovou durante mais do que 24 horas. E a imprensa [estava] replicando os releases do governo, e a gente não sabia como rebater porque não sabia o que tinha sido aprovado. Demorou muito para a gente ter acesso. Assim é difícil você trabalhar no controle social, porque quando chega a informação, chega em cima da hora”, detalha Edilene.
Algumas experiências de comunicação produzidas pelos e com os territórios têm alertado e tentado colaborar na busca por espaços de incidência que fortaleçam as lutas socioambientais, principalmente no acesso e tradução de informações em diálogo com as comunidades. Uma dessas iniciativas é a Rede Cidadã, um projeto da Infoamazonia, que tem como objetivo conectar comunicadores locais e mídia regionais da Amazônia Legal, difundindo temas socioambientais produzidos nos territórios. Outro exemplo é o Mapa do Jornalismo Independente do Nordeste, criado em 2023, que visa mapear as iniciativas jornalísticas independentes e colaborativas desenvolvidas na região.
Abertura para diálogo, mas com ações incipientes
Se os grandes empreendimentos econômicos e o setor do agronegócio seguem incidindo na mídia e na ação do Estado brasileiro, a abertura de canais de diálogo e participação social parece ser percebida, por diferentes movimentos sociais e populares, como um dos principais diferenciais entre o primeiro ano do terceiro governo Lula e a gestão Bolsonaro. “É reconhecido que a participação social na construção de políticas de promoção de justiça socioambiental, no âmbito federal, voltou. As retomadas do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), do Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI) e da Comissão Nacional de Combate à Desertificação (CNCD) são exemplos. No entanto, no caso específico da justiça socioambiental nas cidades, as pautas ficam ofuscadas pelos debates relacionados ao desmatamento nos grandes biomas nacionais e à intrusão nos territórios dos povos originários e comunidades tradicionais”, pontua André Araripe.
Para Anderson Amaro, membro titular do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e da direção nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), foi um primeiro ano “razoável porque o governo retomou muitas políticas públicas que foram descontinuadas, mas também, de certa forma, está impulsionando a geração de novas políticas”. Ele avalia ainda que, principalmente por precisar lidar com um orçamento herdado, “não foi o que nós aguardávamos que poderia ser de um governo mais pujante, cumprido com muitas ações do seu programa de governo, mas foi uma retomada (…). Eu acho que um dos maiores legados que a gente pode imprimir nisso é a retomada do leito normal da democracia e, sobretudo, dessa possibilidade do diálogo e da escuta da sociedade civil na construção das políticas”.
Ana Chã, do Coletivo de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), aponta outras diferenças. “A gente tem agora, com Lula, um modelo econômico que voltou a ter no seu centro alguma distribuição de renda. Ainda é um modelo que a gente pode dizer conservador, que não ataca áreas fundamentais, mas tem garantido algumas melhorias do ponto de vista de direitos dos trabalhadores e de políticas sociais que favorecem a classe trabalhadora”, acredita.
Já Ivanilda Santos, do Cimi, frisa que “o discurso do governo é contundente, mas a prática necessita de contundência tanto quanto o discurso”. Para justificar a sua afirmação, ela menciona que “o governo criou o Ministério dos Povos Indígenas e, em toda pasta da administração das políticas voltadas aos povos, priorizou o protagonismo indígena. Porém, a efetivação das reivindicações dos povos, principalmente das demarcações e da proteção dos territórios, não tem avançado conforme o esperado e mesmo propagado pelo próprio governo. Em 2023, o governo garantiu a retirada de todos os garimpeiros do território Yanomami, bem como o atendimento à saúde do povo diante do estado de extermínio exposto pelo impacto da extração de minério. Ações de imediato foram efetivadas, mas chegamos em 2024 e a situação do povo Yanomami continua quase a mesma”.
Estabelecer outras linguagens e métodos
Outra questão defendida pelas lideranças populares é a necessidade de contemplar outras linguagens e métodos nos processos de participação. Eliane Xunakalo, presidenta da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), por exemplo, destaca que mesmo quando procedimentos de participação são assegurados, a linguagem utilizada não é acessível. “Não há transparência dos contratos de compensação, das medidas e valores repassados aos territórios. É necessário aprofundar as explicações sobre carbono de forma mais simples. Temos tentado fazer isso por meio do Projeto Cochicho, que visa levar informações sobre mudanças climáticas às aldeias”, pontua Eliane, que na Fepoimt articula 43 povos indígenas de Mato Grosso.
Em perspectiva semelhante, Neidinha Suruí, co-fundadora da Kanindé, organização que atua com mais de sessenta etnias em Rondônia, lembra que “as comunidades são orais e tomam decisões por meio da oralidade. Há uma discrepância já nessa premissa”. Por isso, para ela, “ter protocolo de consulta é importante, mas precisa ser apresentado em formatos indígenas”. Os instrumentos e mecanismos de controle social, como os conselhos deliberativos, ainda estabelecem uma configuração de reuniões com pautas em linguagem escrita, tempo estabelecido e votação, muito diferente das metodologias de tomada de decisão utilizadas pelos povos tradicionais. Discutir a estrutura do controle social considerando a diversidade desses povos, a forma dos próprios territórios pensarem nessa participação, visando a real inserção das comunidades na gestão, torna-se fundamental para o exercício do direito à participação e à comunicação.
Alfredo Portugal é comunicador e educador popular, doutorando em Educação pela UFBA e mestre em Educação do Campo pela UFRB; Nataly Queiroz é jornalista, doutora em Comunicação pela UFPE e professora universitária; e Raquel Baster é jornalista, educadora popular e mestre em Comunicação pela UFPB. Os três são integrantes do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.