Voz do preso: Presente!
A questão é enfrentar as agruras e cumprir meu dever, colhendo o clamor dos presos, trazendo-o no peito, para libertá-lo em todas as oportunidades que eu tiver
“Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam”
Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido
Faz uns dias, proferi uma palestra em um centro universitário. Falei sobre direitos humanos, sistema de justiça criminal e cárcere. Na ocasião, assim que anunciado, dirigi-me à tribuna e comecei minha explanação sem cumprimentar ninguém da mesa ou da plateia.
Li a carta de um apenado, dirigida a mim, o juiz de seu processo, onde ele contava sobre seus erros, seus arrependimentos, sobre as necessidades de sua mãe e irmã, que, sozinhas, precisavam muito dele. Em determinado momento, dei ênfase ao trecho, “sou um garoto de bom coração, preciso de uma nova chance”. E assim segui minha fala.
Era a voz do cárcere que eu fazia se apresentar diante daquelas pessoas livres. Por ela discorri sobre o espaço histórico dos direitos humanos, as lutas pela sua conquista, os pactos e tratados internacionais, o fundamento da dignidade da pessoa humana.
Depois, adentrei nas violações de toda ordem a esses direitos e abordei o racismo, registrando que, como homem branco, nunca sofri discriminação, pois sempre fui privilegiado e exatamente por isso tinha e tenho a obrigação de denunciar a extrema injustiça da seletividade penal, cujo DNA é racista.
Por fim, acrescentei que é possível mudar esse estado de coisas, que há lugares, países, onde já se compreendeu que segurança pública não se faz com armas, mas com saúde pública, educação pública, habitação pública, com a concretização da igualdade social e econômica.
Encerrei com a leitura da crônica “João Marcos” (Aprisionadas lágrimas de homens), que conta sobre um preso que encontrei que, desumanizado pela miséria, me fez perceber o quanto eu, juiz, pelas lágrimas com ele me identificava.
Fui aplaudido.
Há muitos anos faço palestras, aulas magnas, seminários. Sempre recebo aplausos, elogios, abraços. Não nego que isso me faz bem, não ao ego, pois já aprendi que nada somos, mas pela sensação de ser reconhecido no meu trabalho.
A quase totalidade da população prisional do país esteve ou está em condições de vulnerabilidade, dentro de um recorte racial, com baixa escolaridade, trabalho precarizado, carente em vários sentidos e inclusive com insegurança alimentar.
Assim, ao potencializar a voz dos presos nesses eventos, tento contribuir para a superação da terrível e desgraçada realidade em que eles se encontram. O modelo ético periférico que essa voz traz é essencial para nossa cidadania e tirá-la da margem faz-nos desenvolver um olhar ético, que supera o arquétipo do bandido não humano.
Não quero ser a encarnação da esperança, não sou salvador de ninguém, aliás, ninguém se salva sozinho. Entretanto, ao carregar a prisão comigo, abrindo-a para conhecimento de estudantes, pesquisadores, profissionais do direito e para a sociedade em geral, talvez torne-me vetor da esperança.
A questão então é enfrentar as agruras e cumprir meu dever, colhendo o clamor dos presos, trazendo-o no peito, para libertá-lo em todas as oportunidades que eu tiver.
A dor da pena uma hora terá que ceder, não é mais possível viver e aceitar essa tristeza sem fim. As necessidades urgentes dos presos precisam ser ouvidas e, principalmente, atendidas, ou nada mais restará.
João Marcos Buch é autor e juiz de direito.