50 anos da retomada sino-brasileira: o retrato de um imperativo de Terceiro Mundo
Após uma ruptura marcada por paranoia ideológica no Golpe de Estado de 1964, as relações sino-brasileiras foram retomadas ainda na mesma ditadura que as execrou
O Brasil e a China se preparam para comemorar cinquenta anos de uma aproximação entre os países. Este momento, que ocorreu ainda com Mao Zedong[1] vivo (embora não governando) no país asiático e com o ditador Ernesto Geisel reinando no Brasil, pode ser chamado de uma normalização de relações ou até do reconhecimento da China “vermelha”, como os jornais a descreviam na época, sendo que, em linhas mais amplas, deveria ser considerada uma reaproximação. Para isso, é interessante rememorar notícias mais antigas que este recordado 1974.
Afinal, foi na China que vivia a ressaca do Grande Salto de Mao, governada pelo presidente Liu Shaoqi, que buscava saídas menos radicais que o grande líder da Revolução Chinesa, na qual João Goulart realizou sua visita em 1961, pedindo vivas à amizade entre a China e o Brasil. Essa visita aconteceu antes do início da Revolução Cultural chinesa, momento que fez de Liu um “traidor” dos ideais revolucionários em seu país.
Se hoje a figura de Liu foi reabilitada por Deng Xiaoping e recordada também por Xi Jinping, o então presidente que recebeu Goulart foi por muitos anos visto como líder de um movimento antirrevolucionário na China “vermelha”. Contudo, no Brasil, a viagem de Jango para a China, passando também por outros países do Oriente da época, disparou um alerta aos interesses estadunidenses e aos mais americanófilos do país. A turnê do então vice-presidente soava alertas paranoicos em grande parte da direita brasileira, ainda que o então presidente Jânio Quadros, mesmo sendo um quadro ultraconservador, tivesse sua própria visão de uma política externa independente e não alinhada, o que fez com que desse anuência a Goulart e ao velho PTB em suas ideias de aproximação com o país de Mao. O Brasil, naquele momento, foi o primeiro país a romper o então bloqueio informal que os EUA impunham a países de sua zona de influência, os impedindo de relacionar-se – inclusive economicamente – com uma China que não a governada pelos nacionalistas que agora ocupavam Taiwan.
Foi também nos arroios dessa viagem, na qual Jango era acompanhado de uma comitiva de ministros, legisladores e representantes comerciais, incluindo a figura do então senador Franco Montoro, que Jânio fez sua tentativa de autogolpe, que terminou na melancólica renúncia do homem da vassourinha. Com o vice-presidente neste momento em Cingapura, a comitiva recebia a notícia de que a presidência havia ficado vaga, fazendo com que Goulart anunciasse diante da imprensa que voltaria ao Brasil para “assumir a presidência”, afinal essa era sua prerrogativa constitucional.
Desse imbróglio, surgiu a Crise de Sucessão de 1961, causada pelos então ministros militares do país que desejavam impedir a passagem de poder a Jango – aquele Jango tão acusado de ser comunista e que voltava justamente das terras de Mao. Ao menos no que concerne a imagem, a paranoia anticomunista se refastelava com as possiblidades de anunciar uma ruptura para impedir a instalação do comunismo no país, que supostamente aconteceria após os trâmites da Constituição Federal da época. Graças aos conhecidos esforços de Leonel Brizola, que movimentou tropas legalistas, Jango foi empossado e um golpe foi freado, tendo apoio inclusive de militares que também eram conservadores e anticomunistas, mas não golpistas, como era o caso naquele momento do general Pery Constant Bevilaqua.
Goulart tornou-se presidente e a institucionalidade brasileira aguentou esse primeiro golpe, partindo então para o seu tumultuado governo, constantemente sabotado internamente, como apontou René Armand Dreifuss em seu já clássico livro – 1964: A Conquista do Estado –, e externamente, como também determinam importantes estudos, como o de Carlos Fico – O Grande Irmão: da Operação Brother Sam aos anos de Chumbo. Em 1962, o presidente brasileiro visitou os EUA e foi recebido por John F. Kennedy, sem saber que parte integrante da política externa de seu colega ao norte, a Alliance for Progress, calculava e incentivava a sua derrocada. Essa derrocada chegou em 1964: a institucionalidade brasileira se rompia, um suposto general moderado assumia o país prometendo eleições para 1965. Estas não vieram até 1989, fundava-se a ditadura militar brasileira. Nesse mesmo contexto, se rompiam e rasgavam todos os acordos que Jango havia traçado em Beijing alguns anos antes, ainda como vice-presidente. O Brasil piscava para a Casa Branca e mudava sua política externa para uma de total alinhamento, rompendo relações com todos os países do mundo socialista.
A China, já que era a desculpa, se tornava também uma das primeiras vítimas desse novo regime, que desde o início matava e torturava, antes mesmo de decretar sua hegemonia eterna com o AI-5. Foi em 3 de abril, um dia após os militares efetivamente tomarem o poder no país, que as forças do Estado brasileiro invadiram apartamentos no Rio de Janeiro e prenderam nove chineses sob a acusação de serem espiões. As provas contra estes estrangeiros foram completamente fabricadas, baseadas na paranoia que alimentava a ditadura que nascia. Estes chineses estavam no Brasil graças aos acordos de Goulart, assinados ainda em 1961 e apenas eram as representações comerciais permanentes legais que o Brasil havia convidado o país asiático a estabelecer no Rio de Janeiro, que ainda era usado como capital brasileira.
Esses homens foram condenados a dez anos de reclusão, mas posteriormente foram expulsos por Castelo Branco após cumprirem um ano de pena. Seus casos foram contados no livro O Caso dos Nove Chineses: O escândalo internacional que transformou vítimas da ditadura militar brasileira em heróis de Mao Tsé-tung, de Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo. Aquela mesma ditadura que não cansava de acusar sua oposição de violenta e terrorista, em sua primeira oportunidade como governo cometeu atos de terrorismo de Estado. Esse caso ilustra muito bem quem começou as violências no conflito armado que se instalaria mais tarde no país, sem falar numa disparidade de forças absurda e num flagrante desrespeito aos direitos humanos que não foi notado em nenhum diplomata sequestrado pelas guerrilhas urbanas anos depois – ainda que esses grupos também cometessem seus atos de violência extrema, naquela dança da morte.
O Brasil demorou até o governo de Dilma Rousseff para suspender as condenações desses nove chineses, para que pudessem voltar a visitar o país. A presidenta na época iria reparar o erro histórico do país e estender desculpas aos cidadãos chineses, concedendo-os a Ordem do Cruzeiro do Sul. Contudo, seu afastamento, em 2016, impediu que essas desculpas se concretizassem. A China é hoje o principal parceiro comercial do Brasil – assim como de muitos outros países –, mas segue sendo vítima das paranoias anticomunistas de muitos corações e mentes que se moldaram na Guerra Fria.
A Guerra Fria era um período complexo e por isso, dez anos após estes acontecimentos que varreram o Brasil na onda do Golpe de Estado, veríamos a um Ernesto Geisel, ditador brasileiro, se aproximando da China pós-Revolução Cultural, antes que Richard Nixon e seu todo-poderoso secretário Henry Kissinger promovessem a normalização de relações entre os EUA e o governo de Beijing. É esse momento que recordamos hoje, e o contexto parece difícil de compreender. Efetivamente, só é possível fazê-lo através do entendimento de como as linhas da Guerra Fria tardia foram deixando alguns imperativos que apareciam nas relações internacionais.
O imperativo do Terceiro Mundo nas relações Brasil e China
Um grande aspecto da reaproximação, desta vez efetiva, do Brasil com a China continental, parte de um esforço internacional do próprio país asiático, que sedimentava sua economia, ainda que seu boom de crescimento não tivesse efetivamente começado. A China começou a aparecer entre os interesses do capital internacional e suas exigências para permitir relações comerciais eram tão simples como as ameaças de Taiwan caso se atrevessem a negociar com a China continental. Se negociassem com Beijing, tinham de romper com o governo de Taipei – e a mesma prerrogativa era exigida pela contrapartida. Era apenas uma China e o mundo tinha que escolher, sendo este o período histórico em que paulatinamente foi-se escolhendo Beijing.
Na toada destes acontecimentos, havia indicativos da política externa republicana, que dominava a Casa Branca desde a vitória de Nixon sobre os democratas em 1968, de que a ordem de relações zero e ativismo anticomunismo dos anos Kennedy e Lyndon B. Johnson se encerraria em nome de uma aproximação mais “pragmática”. Neste pragmatismo, se incluía falar normalmente com a União Soviética e com a China continental, ao mesmo tempo em que secretamente se realizavam as mais violentas ações de interferência externa estadunidense na Ásia e em partes da América Latina – basta recordar os exemplos do Chile, do Camboja e de Laos –, ainda que não atuassem fortemente sobre o Brasil neste momento. Esta era a política de Kissinger, que entendendo os danos causados pela Guerra do Vietnã na opinião pública de seu país, planejava abordagens mais indiretas. Junto delas, o ainda presidente Nixon deixava as bases de sua política exterior na economia, que foi a que efetivamente teve mais êxito no passar dos anos no objetivo de sedimentar a hegemonia estadunidense, sendo recuperada amplamente por Ronald Reagan depois do curto período democrata de Jimmy Carter.
O Brasil nessa época, diferente do tão americanófilo período de Castelo Branco, vivia os passos finais de uma transição na ditadura militar que vinha ocorrendo desde Costa e Silva, intensificando-se com Emílio Garrastazu Médici e depois com Geisel. Não era a ascensão da dita linha-dura, mas o acordo ideológico com parte deste setor, que deixava o excesso de paixão pela linha norte-americana para os tecnocratas civis e tentava recuperar algum tipo de ideário nacionalista no coração daquela ditadura, especialmente a partir das salas da Escola Superior de Guerra. Ainda que a linha-dura fosse profundamente pró-EUA, se contentava até este ponto com a liberdade para oprimir e matar à vontade, deixando a política de altos palácios para a outra ala, que apontava os generais presidentes.
São os anos do conhecido milagre econômico. Esse momento, que viria a sedimentar tanto a hiperinflação que o Brasil conheceu nos anos seguintes, quanto o fim ideológico do aspecto nacionalista que tentava se criar na ideologia militar a partir dos anos Médici, também é chave para entender a reaproximação de Brasília com Beijing. Até porque, o que a ditadura foi buscar com sua nova política exterior, pragmática – roubando as terminologias de Nixon – era solucionar o problema que crescia no país por causa do tanto que seu plano econômico teria funcionado. Sem entrar no mérito de se esse milagre efetivamente chegou ao povo – mas, adiantando que a resposta é não – sem dúvida ele criou algo que o Brasil não via fazia alguns anos, um excedente de produção industrial e agrícola que precisava ser escoado.
Foi só quando essa situação se mostrou que a ditadura entendeu o outro lado da nova abordagem econômica da política exterior de Nixon para o Brasil. Aquelas famosas ajudas financeiras dos anos democratas – que ainda que chegassem principalmente para empresas transnacionais – ofereciam capital para desenvolvimento do Brasil sem cobrar um vínculo financeiro explícito. O republicano havia mudado esse acordo, não oferecia mais ajudas, senão empréstimos. Estes empréstimos eram em sua maioria controlados por bancos estadunidenses (e de alguns países europeus) e sempre garantidos pelo tesouro dos EUA. Era uma forma dos banqueiros norte-americanos ganharem dinheiro de maneira segura, investindo nos países aliados da Casa Branca, permitindo também que, no mesmo golpe, o presidente estadunidense atacasse a ética ou o governo desses países quando fosse conveniente, para esfriar as críticas da opinião pública interna.
Vale a recordação de que o primeiro presidente estadunidense que denunciou e pediu o fim das torturas da ditadura no Brasil foi o próprio Nixon. Ainda que fosse o mesmo ocupante da Casa Branca que recebeu outra vez a visita de um presidente brasileiro desde que Kennedy recebera Goulart. Esse encontro rendeu uma foto, tão esperada por Médici – e uma série de facadas nas costas dos EUA na ditadura brasileira. Nixon torpedeava as intenções da ditadura em ampliar sua influência política e econômica nos países vizinhos, o que impedia que Médici encontrasse os mercados para seus produtos – agora excedentes do mercado interno. E por que não vender no próprio mercado dos EUA? Pois nem pensar, o republicano também havia pensado nisso e colocado em marcha um enorme protecionismo contra produtos brasileiros (e alemães, japoneses, dentre outros países que buscavam expandir suas economias naquele período).
Não nos esquecendo dos empréstimos, o Brasil sabia que as datas para começar a pagar o imenso capital que havia buscado lá fora para o seu milagre se aproximavam como um espectro de morte. O país teria que conseguir escoar sua economia e gerar superávits, afinal os militares se atreveram até a repassar empréstimos estadunidenses aos países vizinhos que queriam influenciar. O New York Times trouxe notícias de representantes econômicos norte-americanos embasbacados com o Brasil basicamente garantindo os cheques de seus bancos e mandando o dinheiro à ditadura que apoiava no Paraguai (Alfredo Stroessner) e a que havia instalado na Bolívia (Hugo Banzer).
Quando a ditadura percebeu o buraco em que havia entrado, a sua política exterior foi a arma com a qual tentou defender-se e evitar sua derrocada total. Médici já havia percebido o dano que Nixon causou para ele, mesmo sorrindo ao seu lado na foto. Por isso, os militares começaram a autorizar e abertamente anunciar vendas massivas de açúcar brasileiro a países do outro lado da Cortina de Ferro. Primeiro foi com a União Soviética, depois com a China. No meio dessa insustentável situação, o Brasil também fez críticas mais que severas a Israel durante a Guerra de Yom Kipur e apoiou os movimentos libertadores de corte marxista na Angola, para garantir que não sofreria um choque de falta de energia, caso fosse boicotado pela OTAN na Crise do Petróleo de 1973. Geisel herdou de Médici um país que se tornaria insolúvel na mesma velocidade de cruzeiro que anunciara que crescia, com uma boa quantia de influência estadunidense nesse processo.
Esse foi o cenário que levou aquele ditador anticomunista a buscar aproximar-se daquele novo país comunista, que se mostrava forte ao mundo pela primeira vez. A China que recebeu a aproximação de Geisel já voltava a ter mais a presença de Mao na sua política, após a Revolução Cultural, sob a então presidência de Dong Biwu. Essa China – que se colocava no mundo – garantia sua reunião com Nixon e mostrava seu sucesso em vencer Taiwan como a única China, em sua duradoura disputa com o Kuomintang. Essa China – alçada a protagonista – já havia se afastado da União Soviética, contudo ainda era esperado que ela fosse se integrar ao dito mundo comunista, ou talvez almejar aproximar-se do Primeiro Mundo. Contudo, a China se colocou internacionalmente como parte do Terceiro Mundo, quase que por escolha.
Nesta mesma época, ao contrário do que o imaginário popular possa pensar, o Brasil de Geisel era apontado como um possível “líder do Terceiro Mundo” na mídia internacional, especialmente após essa política externa não alinhada ter se iniciado no apagar das luzes do governo Médici. O New York Times, por exemplo, colocava os ditadores brasileiros como possíveis líderes no concerto das nações para defender os interesses econômicos da nascente África descolonizada, junto à China “vermelha”, já que outras potências asiáticas tinham alinhamento mais fácil com os EUA, como o Japão e a Coreia do Sul. Geisel também acabava se mostrando próximo do Terceiro Mundo porque o imperativo protecionista dos EUA, com seu controle indireto sobre as economias latino-americanas através da mordaça dos empréstimos em dólar, impedia o Brasil de se unir ao Primeiro Mundo, ainda que quisesse.
A ditadura percebeu que a intenção da Casa Branca era empurrar o país para o Terceiro Mundo, e, de forma semelhante, a China percebeu que seu lugar seria eternamente na companhia desses países, devido à sua abordagem econômica, doméstica e internacional. Para além de recordar que essa reaproximação nasceu no mesmo regime que havia se afastado da China, é importante a recordação de que ela se deu por um imperativo global, muito causado pelas posições fechadas e excludentes dos EUA em relação aos países do Terceiro Mundo. Nesse momento, guardadas importantes exceções (especialmente na África), também se via a União Soviética empurrando esses países a uma eterna condição de satélites.
Empurrados por todos os lados, não restou opção para estas nações do então Terceiro Mundo que aceitar esse imperativo histórico – e aproximar-se como forma de sobreviver. Disso nasceu o que hoje talvez seja uma das mais cruciais relações bilaterais, políticas e econômicas que o Brasil tem.
Daniel Azevedo Muñoz é professor e jornalista, mestre e doutorando em História Contemporânea pela Universidad Autónoma de Madrid. Integra o grupo de pesquisa em Jornalismo Popular & Alternativo, da Universidade de São Paulo, e a Rede de Investigadores em Comunicação Internacional da Universidade Estadual de Ponta Grossa.
[1] Atual transliteração para alfabeto latino do nome do revolucionário chinês, com origem no método hanyu pinyin. A transliteração antiga, do método Wade-Giles, era Mao Tsé-Tung.