Bolsonarismo e a escalada da violência política
A necropolítica é um processo que acompanha a América Latina especialmente desde a segunda metade do século passado. Ditaduras militares no Brasil, Argentina, Paraguai, Chile, Uruguai e Bolívia foram exemplos de regimes de extermínio e de violência política contra opositores
Ao descrever uma cena de suplício (torturas públicas), Foucault[1] analisava como a formação de um poder estatal moderno esteve acompanhada de uma forma de julgar e punir os cidadãos, consubstanciada no monopólio “legítimo” do uso da força e da violência. Por mais paradoxal que pareça essa frase, a guilhotina foi uma das primeiras tecnologias modernas de “dar morte” a uma pessoa. A execução da morte era rápida e instantânea, mas o castigo mantinha seu carácter público, diante das multidões. Com o avanço do capitalismo, a formação de um poder de punir foi transferida para um poder judicial aparentemente imparcial e sem relação com o político, distante dos clamores públicos, e a pena executada de forma técnica e sem o elemento do espetáculo. Essa política de controle e divisão dos corpos, Foucault chamava de biopolítica, e se resumia numa prerrogativa liberal do poder soberano: “deixar viver e fazer morrer”.
Analisando as teorias de Foucault diante da história do século XX – sobretudo diante do Holocausto, Agamben[2] percebeu que o poder soberano de aplicar punições se tratava então de uma tanatopolítica, que deveria ser resumida como “fazer viver” (o controle político sobre os corpos e as condutas) e “deixar morrer” (a dessacralização e banalização da morte, no lugar de um poder soberano encarregado da execução de uma punição legítima).
Muitos estudiosos da América Latina, da África e da Ásia entenderam que os horrores do Holocausto já haviam sido vividos muitos séculos antes nos territórios colonizados, por mais que os teóricos europeus se omitissem de falar sobre isso. A questão de fundo está na fusão entre política e guerra. Achile Mbembe propõe os termos necropolítica e necropoder “para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar ‘mundos de morte’, formas únicas e novas de existência social”[3].
Ao analisar como se dão as guerras na época da globalização, Mbembe mostra a heteronomia das forças belicistas, as “máquinas de guerra” ligadas a interesses econômicos locais e transnacionais (legalizados ou não). Os ataques já não partem de um “exército regular” e o Estado já não possui o monopólio do direito de matar (ao menos não apenas suas forças oficiais). Prolifera uma fragmentação de grupos que exercem poder de facto, e ações dispersas e seccionadas, ao modo das milícias, mercenários, “pistoleiros” ou “facções do crime organizado”, conforme a gramática de turno da imprensa.
Na “guerra sem fim”, que é a lógica do capitalismo nos países colonizados, o terror e a morte se fundem como experiências do cotidiano. O horror à morte própria e dos seus se transforma em satisfação e sentimento de segurança quando ela ocorre com o outro. Ao final, não há espaço para a vida de nenhum lado, pois “a vontade de morrer se funde com a vontade de levar o inimigo consigo, ou seja, eliminar a possibilidade de vida para todos”.
Lendo Mbembe, é preciso trazer sua pergunta inicial para a experiência atual da América Latina e do Brasil: “se consideramos a política uma forma de guerra, devemos perguntar: que lugar é dado à vida, à morte e ao corpo humano (em especial o corpo ferido e massacrado)? Como eles estão inscritos na ordem do poder?”.
Bolsonarismo
Esses estudos são uma tentativa de refletir sobre o que não tem resposta, apenas luto e silenciamento: o absurdo do assassinato do servidor público de Foz do Iguaçu, e dirigente do Partido dos Trabalhadores, Marcelo Arruda, efetuado por um simpatizante do bolsonarismo que irrompeu com tiros uma festa privada com temática de defesa do próprio partido no qual Marcelo exercia legitimamente sua cidadania política.
Um dia antes (em 8 de julho), o Jornal da Cultura noticiava: “Democracia sob ameaça: crescem episódios de ameaças, ataques e violência na pré-campanha eleitoral. Pela segunda vez em um mês, militantes do PT são alvos de atentado durante evento público com o ex-presidente Lula. Episódios com ameaças e ataques tornam a pré-campanha eleitoral ainda mais tensa”. A sucessão de fatos na mesma semana mostrava também um ataque ao veículo de um juiz responsável pelo processo do ex-ministro da Educação e disparo de tiro contra a redação de um dos maiores jornais do país, a Folha de S. Paulo. Em seguida, a pesquisadora Camila Rocha, doutora em Ciência Política, analisava: “A própria conduta do presidente, ao não condenar explicitamente, de forma dura como deveria ser condenado, acaba fazendo com que as pessoas se sintam à vontade de cometer esse tipo de ataque porque elas sabem que muito provavelmente não serão investigadas e punidas como deveriam ser”.
Sobram exemplos da defesa de uma política de morte e terror por parte do atual presidente do Brasil. Quando ainda era deputado federal, estampou na parede de seu gabinete, no corredor da Câmara dos Deputados, em Brasília, um cartaz com a frase “Desaparecidos do Araguaia. Quem procura osso é cachorro”, se burlando da atividade de busca de familiares de pessoas desaparecidas desde o regime militar. O Grupo de Trabalho do Araguaia, aliás, foi extinto por decreto presidencial em 2019. O mesmo decreto extinguiu outros órgãos de participação da sociedade civil.
A necropolítica é um processo que acompanha a América Latina especialmente desde a segunda metade do século passado. Ditaduras militares no Brasil, Argentina, Paraguai, Chile, Uruguai e Bolívia foram exemplos de regimes de extermínio e de violência política contra opositores. Guatemala e El Salvador foram exemplos de guerras e deslocamentos forçados contra comunidades inteiras. Por sua vez, os governos da Colômbia e do Peru comprovadamente lançaram mão de grupos paramilitares para a repressão política – fazendo desaparecer a fronteira entre governo e crime organizado. Esse modelo chegou ao México e perdura até os dias atuais, onde se acostumou a usar o termo “narcopolítica” e “narcocultura” para se referir à instalação de grandes grupos criminosos nos núcleos de governo e nas bases da sociedade.
No Brasil, a cultura da vingança, da agressão, da morte e do assassinato está disseminada e televisionada diariamente através das câmeras de segurança e dos operativos policiais (e esses numerosos casos ainda são uma pequena parte do cotidiano das mortes violentas – na guerra civil velada que descreve o pesquisador Luís Mir[4]). Nem bem tem sido possível vivenciar e processar o luto coletivo pelo extermínio de dois defensores dos povos indígenas, conhecidos mundialmente, outro fato absurdo vem à tona e dispersa o medo, o silenciamento social e o estado de tensão permanente. Ainda há muito para entender.
Júlio da Silveira Moreira é pesquisador e professor na Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
Leia os textos da série “Dossiê Estado de Choque” de 2019
Simulacros: a hiper-realidade do extermínio
Fazer sumir: o desaparecimento como tecnologia de poder
“Que morram”: a greve de fome e as indiferenças do Estado
Políticas da morte e seus fantasmas
A violência como forma de governo
[1]FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento das prisões. 35. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte, Editora
UFMG, 2002.
[3] MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
[4] MIR, Luis. Guerra Civil – Estado e Trauma. São Paulo: Geração Editorial, 2004