CGU confirma irregularidades e OCB cria painel de dados da Lei Aldir Blanc
No entendimento da CGU, a política da lei Aldir Blanc no Paraná foi ineficaz
Esta reportagem final da série A Crise da Cultura busca por esclarecimentos sobre relatos de falta de transparência e possíveis falhas de fiscalização e controle dos órgãos públicos, que colocam em dúvida a confiabilidade de editais de cultura. Para facilitar a leitura, a reportagem preparou uma lista das siglas das organizações citadas e um glossário de abreviaturas e termos.
Indicadores da Lei Aldir Blanc (LAB) revelam contradições e irregularidades em sua aplicação no Paraná. Nova auditoria da CGU (nº 1274864, 2023) confirma denúncias anteriores e afirma que parte dos recursos ficaram concentrados em 220 nomes. Os recursos públicos não chegaram à maioria dos 397 mil trabalhadores do entretenimento e cultura mais necessitados durante a pandemia (44 mil prejudicados diretos), e apenas 14 mil foram beneficiados (Protocolo 20.379.653-6). Para a CGU, teria ocorrido desperdício de recursos públicos:
Mesmo com denúncias (a primeira, por membros do Consec em 2020), e pressão da imprensa, gestores avançaram pouco em editais burocráticos e dirigidos favorecendo elites da cultura ou centrais e classe dirigente, mesmo sendo verbas assistenciais. Especialistas afirmam que os problemas são estruturais e se repetem em todo o Brasil.
Até o momento não houve punição para envolvidos em premiações consideradas irregulares, entre funcionários públicos e proponentes com prêmios duplicados e concentrados. Gestores negam ocorrência de falhas e emitem respostas evasivas em ofícios que descumprem a LAI (Lei de Acesso à Informação).
O Consec criou uma comissão de fiscalização da LAB (com maioria de membros do poder público) que não foi eficaz. Na Alep, a Comissão de Cultura se mostrou omissa quanto às apurações de denúncias. O panorama é de prejuízo para as políticas públicas contrariando o SNC.
Nos últimos três anos, foram feitas denúncias pela sociedade civil e solicitações de informações pela imprensa e organizações da cultura a órgãos públicos. Os protocolos enviados revelam que alguns não fornecem documentos solicitados (FCC), não respondiam a contento ou dentro do prazo da LAI (SEEC-PR), ou declinavam a competência a outros órgãos (MP-PR, MPF e PGR).
Pedidos de informação aos órgãos públicos: mais perguntas que respostas
A reportagem contatou, via LAI, organismos públicos, de controle interno e externo do Executivo, Legislativo e Judiciário das três esferas de poder. Na checagem final, a reportagem contatou órgãos mencionados para confrontar algumas devolutivas ou dialogar com aqueles que não responderam, sem obter novidades. Como diversos documentos e respostas ainda serão fornecidos pelos órgãos, se optou pela criação de um Painel de dados da LAB, em que será possível o acompanhamento dos desdobramentos do caso.
PODER EXECUTIVO:
A FCC é órgão municipal de cultura de Curitiba que executou editais da LAB. Durante a pandemia, demorou a responder pedidos de informação feitos pela sociedade civil e entidades, justificando não reconhecer representatividade do solicitante, ou a razoabilidade do pedido feito via LAI. Foram solicitadas listagens de documentos, questionou-se prêmios duplicados entre estado e município revelados pelo TCE-PR, se há proposta para coibir acúmulo de premiações e por que tratou um representante da OMB à revelia dos princípios da administração pública, entre outras questões. Muitas respostas foram incompletas ou evasivas. A FCC não se posicionou sobre denúncias e chamou de ilação pedidos de resposta incompletos ou não respondidos a que a reportagem teve acesso:
(FCC, Protocolo 00-011541/2023, 28/04/2023)
Dizem desconhecer a ocorrência de prêmios duplicados (mesmo diante de comprovações de auditorias).
(FCC, protocolo 00-018535 2023, 29/06/2023)
O TCE-PR, no entanto, divulgou relatório que afirma o contrário – documentos que a FCC já tinha ciência. Na auditoria do TCE-PR, das páginas 70 até 86, são demonstradas as contradições, duplicidades de pagamentos dos mesmos projetos tanto pela SEEC-PR como pela FCC.
Na página 75 do relatório do TCE-PR, é citado que no site da Fundação Cultural de Curitiba (FCC), consta modelo de “Declaração de INEXISTÊNCIA ou EXISTÊNCIA de projeto similar em outras Leis de Incentivos”. A SEEC-PR também exigia a auto declaração de não contemplação do mesmo projeto em outro edital. Sendo questão com orientações normativas. Segundo o TCE-PR (p. 71) a SECULT (hoje Minc) destaca a questão destas vedações no texto da Lei Aldir Blanc (§ 1o do art. 9o do Decreto 10.464/2020), alinhando as esferas municipais, estaduais e federal na mesma normativa, e ainda segundo a CGU:
O TCE-PR verificou que “ações descoordenadas materializam-se na sobreposição de editais e programas. Para fins amostrais, foi definida análise comparativa com os editais da FCC.”, expondo que a FCC foi objeto da análise da auditoria (páginas 70 a 86), incluindo tabelas, com casos recorrentes de pagamentos duplicados do mesmo projeto entre a esfera municipal e estadual.
Ao tomar conhecimento (novamente) do que a auditoria do TCE-PR expôs, a FCC se obriga a apurar, os casos citados, pois:
Ainda segundo o TCE-PR, ambos os órgãos têm sistema de operação comum, que permitiria o controle e fiscalização.
Diante de uma pergunta como “qual a posição da FCC diante de fatos que lhes envolvem institucionalmente”, a resposta questionou as “publicações digitais” que citam a instituição, recusando-se em esclarecer:
(FCC, protocolo 00-018535 2023, 29/06/2023)
O órgão de cultura se mostra intransigente com a imprensa diante de fatos que na origem foram apresentados pelo TCE-PR e CGU.
Responsável pelos editais estaduais da LAB no Paraná, a SEEC-PR respondeu apenas um protocolo entre mais de uma dezena enviados em três meses (descumprindo com a LAI). Em reunião solicitada para esclarecimentos com André Avelino, Diretor de Apoio, Fomento e Incentivo à Cultura, em 13/07/2023, a organização não reconheceu possíveis vícios nos processos de editais. Alegou não existir vedações na participação em editais da LAB (confirmadas pela CGU, p. 28-35), mas informou que os casos comprovados de funcionários públicos premiados estão em fim de análise e tendem a devolução dos recursos públicos ou entrada na dívida ativa do Estado. Não se posicionou sobre o GT de fiscalização da LAB no Consec, que não efetivou resultados. Sobre um áudio obtido, em que a secretária de Cultura teria afirmado que “as pessoas não querem participar de edital com valores baixos” (como justificativa para premiações pomposas que resultaram em concentrações e exclusões), Avelino disse não ter essas informações e não confirmou os fatos.
Universidades promoveram editais da LAB em cooperação técnica e financeira com a SEEC-PR. À UEL/Fauel foi solicitada a lista completa de ministrantes e como se deram suas contratações, que informou que estes foram pagos com recurso próprios, sem fornecer a lista completa. Alguns professores convidados estariam entre os acumuladores de prêmios em outros editais (apontados em auditorias cidadão, do TCE-PR e CGU), mas a universidade disse desconhecer a informação. O SEPED-PR questionou editais que exigiam gravações de vídeos com concentração de artistas no ápice de contágios da variante omicron do coronavírus. Em resposta, a UEL e SEEC-PR mantiveram a exigência, contrariando os protocolos epidemiológicos. Em outro questionamento, à UEPG, um representante setorial fez testes de inscrições na Bolsa Qualificação a fim de atestar a acessibilidade da plataforma digital, concluindo ser um sistema não amigável, dificultando o acesso dos candidatos. O edital previa 12 mil vagas, não preenchendo 3.708, enquanto 14.728 foram excluídos. Procurada, a UEPG não respondeu no prazo da LAI.
Para a CGU foram enviadas questões sobre seu relatório de auditoria: pedido da lista de duzentos nomes que acumularam prêmios e se o órgão recomendou uma auditoria cruzada entre FCC e SEEC-PR (em vista de duplicidade de benefícios/projetos entre os dois órgãos).
No entendimento da CGU, a política da lei Aldir Blanc no Paraná foi ineficaz:
Ainda segundo a CGU, as concentrações não deveriam ter ocorrido:
Segundo a página 9 do Processo 20.379.653-6_1 , a SEEC-PR, tem por tese de que não ocorreu “nenhuma malversação dos recursos por parte do Estado.”
Quanto à atuação de redes e grupos de interesses. Foi confrontada a informação do número de membros que consta no relatório da CGU, que aponta para mais de duzentos nomes.
O órgão respondeu que a demanda foi encaminhada à área técnica da CGU para conhecimento e análise.
Ainda segundo a CGU, ao confrontar a razão das concentrações de prêmios e valores altos nos editais, a SEEC-PR justificou defendendo as redes de agentes culturais premiadas de forma concentrada, diante da CGU, que constatou ocorrências de mais de uma premiação aos contemplados na qualidade de pessoa jurídica e pessoa física. Diante da auditoria da CGU (1274864 02/2022), a SECC respondeu:
PODER LEGISLATIVO
Na CMC, mesmo com a auditoria do TCE-PR apontando envolvimento do município no caso da LAB, a comissão responsável pela cultura respondeu contrariamente, que o órgão auditado foi o estadual, e não o municipal. A CGU afirmou em relatório de auditoria que a aplicação dos recursos contrariou os objetivos da LAB, citando a duplicidade de prêmios, envolvendo Estado e município.
Na Alep, o então deputado Michele Caputo (da Comissão de Saúde) promoveu em 2022, a pedido do SEPED-PR, a Audiência Pública Desafios da Cultura no Paraná, fez um pedido de informação à SEEC-PR e abriu um pedido de CPI. Sobre medidas tomadas por irregularidades com a LAB, o presidente da Casa, Ademar Traiano, informou que não foram localizados documentos que comprovem resultados de apuração. A Comissão de Cultura (omissa quanto a apurações de denúncias da LAB em seu grupo de trabalho) foi procurada mas não respondeu aos protocolos. Tadeu Veneri alegou ser agora deputado federal, como justificativa para não responder. Goura deu um depoimento em janeiro defendendo a comissão, da qual não faz mais parte. O atual membro Renato Freitas, quando indagado sobre providências diante do caso, alegou que isto não cabe a um membro da comissão, mas sim ao presidente. Demais deputados da comissão não responderam.
Os Tribunais de Contas, que são órgãos auxiliares do Legislativo, também foram consultados. O TCE-PR confirmou denúncias da sociedade civil em sua auditoria sobre a SECC-PR (atual SEEC-PR) com 15 achados de irregularidades e 26 recomendações, algumas foram implementadas e outras tiveram prazo estendido pelo TCE-PR (Protocolo 20.379.653-6, p.14-19). Foi perguntado como o órgão pretende se posicionar diante das irregularidades (como premiações indevidas de funcionários públicos) e quais ações estão sendo feitas, entre outros assuntos, como ingerência política ocorrida em audiência da ALEP. O órgão confirmou as irregularidades localizadas e informou ainda que concerne ao TCU tomar medidas. Dando ainda o TCE-PR em resposta em 22/06/2023 (PROCESSO 375302/23) a informação de que a CGU também é responsável.
Já o TCU trouxe a informação de que a SECULT (Minc) pediu para a SEEC-PR encerrar imediatamente ações da LAB para prestar contas (atrasadas na época, estendidas até 31/07/2023). Ao ser perguntado sobre os resultados do Paraná, o Minc informou que só após a prestação de contas, poderá analisá-las. Se forem reprovadas, medidas de ressarcimento serão efetuadas, se for o caso.
PODER JUDICIÁRIO, MINISTÉRIO PÚBLICO E DEFENSORIAS
O NUCIDH recebeu em 2021 denúncias de racismo estrutural na LAB, informando que encaminhou ofícios a várias instituições, que responderam, em síntese, que os editais abertos em 2022 buscavam contemplar perfis distintos (sem comprovar eficácia). Esgotadas as alternativas de atuação, solicitou providências.
(resposta enviada por e-mail em 30/05/2023)
A DPU oficiou a SEEC em 2022, pedindo detalhamento sobre a execução da LAB, tendo em vista questões étnico-raciais. A resposta resultou em um compilado de 190 páginas com vários documentos da secretaria, incluindo listas de pedidos indeferidos na renda emergencial, entre outros.
Também foram consultadas organizações não governamentais. A OAB-PR informou que foi aberto um procedimento interno sem informar detalhes, enquanto para o movimento negro obteve respostas da PGE-PR quanto a questão racial.
O MP-PR forneceu informações sobre 6 Notícias de Fato (NFs) relacionadas à LAB. Duas foram declinadas como atribuição do MPF (esfera federal), em acordo com deliberação do CNMP. 3 NFs foram arquivadas, mas podem ser contraditadas diante de novos fatos revelados em auditorias. A NF 004621103908-9 virou inquérito policial que soma a outros casos relacionados.
Inicialmente, o MPF, por meio da PGR, não localizou os procedimentos, alegando serem de esfera estadual, contradizendo a decisão do CNMP:
(PGR, comunicação recebida por e-mail, 23/06/2023)
Após diversas comunicações, finalmente as NFs foram localizadas: a nº 0046.22.033591-6, foi encaminhada à PGR, resultando no Inquérito Civil nº 1.25.000.001427/2022-14. A outra NF nº 0046.22.033642-7, enviada à PGR pelo dep. Goura, com o objetivo de apurar alegada inércia do Governo do Estado do Paraná na aplicação da Lei Aldir Blanc, foi arquivada por falta de juntadas de provas, e portanto não localizados atos de improbidades administrativas.
(A PGR arquivou o Procedimento Preparatório n.o 1.25.000.000605/2022-90)
Percebe-se que muitas vezes os órgãos informam que as responsabilidades seriam de outra instituição. Em outro caso, o MPF, por meio da PGR, informou sobre a NF 1.25.000.003721/2022-61 e o ofício 8143 2022-JGGR, com denúncias relativas à LAB. Respondeu que os autos “foram declinados e enviados ao Ministério Público do Estado do Paraná”. Informados de que o CNMP determinou que seria de esfera federal, agendaram reunião com a procuradora da república Eloisa Helena Machado. Justificou que, em seu entendimento, a denúncia recaia mais sobre questões de editais do que de recursos federais, daí declinar para o órgão estadual (que arquivou a denúncia).
(pedido 1333744, 16/06/2023)
O MPF informou que não pode agir sem decisão do CNMP (que já determinou que a esfera é federal) ou representação enviada para eles. A decisão do CNMP, no entanto, foi de que a esfera de atuação é federal para todos os casos envolvendo Lei Aldir Blanc. Denúncias foram enviadas tanto para MP-PR, MPF ou PGR, ou foram declinadas ou arquivadas. Mesmo de posse de comprovações oriundas de auditorias da CGU e TCE-PR, os organismos alegaram somente poder agir se ocorrer representação ou formalização das denúncias pelos órgãos citados:
(MPF, pedido 1333744, 16/06/2023)
Segundo o OCB, respostas de MPF, MP-PR, PGR sobre a esfera responsável estariam em contradição com decisões do CNMP e informações de TCE-PR, CGU e TCU, que alegam que a esfera de apuração da Lei Aldir Blanc seria federal. A quem pertence o caso das apurações da Lei Aldir Blanc?
Conclusão
A OCB e os pesquisadores que colaboraram com toda a série, Manoel J. de Souza Neto e Gehad Hajar, no caso da LAB, constataram: morosidade dos poderes públicos em prover soluções dos problemas apontados pela sociedade civil; não acolhimento de colaborações técnicas da sociedade civil e dos órgãos de classe; atuação negativa de partidos políticos; ação de grupos de interesses que levaram vantagens; confirmação de irregularidades pelas auditorias do TCE-PR e CGU; existência de vítimas da exclusão e fragilidade e obstrução da participação social no CONSEC.
Ainda segundo a OCB, “Diante de impunidade, falta de transparência, declínio de responsabilidades e de narrativas incoerentes vindas de denunciados e de grupos de interesse, o caso se mostra desfavorável para a democracia e para a imagem de instituições e serviços públicos. No entanto, é um marco no contexto das perguntas sem respostas por parte do Estado. Trata-se do primeiro estudo de caso em que as falhas estruturais das políticas e programas de fomento à cultura puderam ser efetivamente comparadas e reveladas para a sociedade. Restando a observação de que mais do que denúncias, a pressão da sociedade civil, Observatórios, Conselhos e imprensa contribuem com a melhoria dos serviços públicos”.
Esta série é dedicada ao jornalista e conselheiro de cultura Helcio Kovaleski (03/04/1965-05/06/2023)