Mote para a vitimização ou para a autonomia?
No sétimo e último artigo da série sobre o novo marco legal, a coordenadora geral do Observatório Educador Ambiental Moema Viezzer traz os pontos de maior destaque dos textos anteriores sobre políticas públicas de saneamento e mostra o caminho para se superar a sociedade da alienação, do hedonismo e do imediatismo através de uma nova ordem social baseada na corresponsabilidade e na autonomia
Quando nos propusemos a organizar esta série sobre o novo marco legal do saneamento, o projeto de lei ainda estava em discussão. O cenário, em aberto, merecia reflexões mais aprofundadas, que contribuíssem para esclarecer a população e ampliar o debate sobre a forma como o país pretendia organizar o atendimento a essa necessidade tão vital.
As leis, sabemos, não são apenas orientações e regras abstratas, que importam somente aos advogados e juízes. Não. As leis se materializam em nossas vidas cotidianamente, em situações, objetos e funcionamentos muito concretos. O fato de boa parte da sociedade não se dar conta disso e não relacionar seus direitos e deveres ao arcabouço jurídico em nada diminui as repercussões. Porém, ao contrário, saber como as regulamentações legais estão atuando sobre nós faz toda diferença. Especialmente quando as decisões ainda não foram tomadas, quando podemos opinar e interferir sobre a construção da legislação.
A intenção, portanto, era chamar a atenção para essa liberdade e ao mesmo tempo responsabilidade de, como cidadãos, participarmos do processo decisório. Apesar da lei já ter sido aprovada e, na prática, estarmos agora discutindo as consequências de sua aplicação, continuamos entendendo ser fundamental essa dupla condição da liberdade-responsabilidade. É a partir dessa vivência que ampliamos o potencial democrático. Delegar as decisões para representantes políticos pode ser prático em uma sociedade atribulada e complexa como a atual. Mas está longe de ser uma garantia de resolução dos problemas.
Tal como apresentado pelos convidados/as que trouxemos para as reflexões sobre o marco legal, há aspectos da universalização do saneamento básico compreensíveis só quando se olha com detalhe para o funcionamento de nossa sociedade, sua história, suas tendências, como bem colocaram Adriana Sotero Martins e Maria José Salles, da Fiocruz.
Significa que a universalização do saneamento básico precisa considerar quem ainda não foi alcançado e entender a razão da desassistência. Só a partir desse diagnóstico se pode planejar realisticamente o atendimento a essas populações. Se as pessoas não têm água porque lhes falta caixa d’água e isso ocorre porque apenas conseguem morar em lugares precários, não regulamentados, sem infraestrutura urbana (ou rural), e ali moram porque seus ganhos financeiros mal suprem as necessidades alimentares, como garantir o fornecimento de água para elas? O pensamento fragmentado, do tipo “a empresa fez sua parte, colocou canos e tratou a água”, não resolve. A gestão em caixinhas, por simples divisão estanque das funções, pode facilitar o controle do trabalho, mas é insuficiente para gerir a vida cotidiana e solucionar seus complexos problemas reais. Simplificando o raciocínio, neste exemplo seria necessário considerar o fornecimento de água juntamente com o planejamento da infraestrutura urbana e o fomento à geração de renda e trabalho. Ou seja, há necessidade de articular diferentes políticas públicas para alcançar essa meta. É preciso ter visão de conjunto sobre a situação e criar meios de fazer distintos órgãos de governo e setores da sociedade cooperarem em prol dessa meta em comum. Poderíamos avançar na análise do nosso exemplo. Tais moradores trabalham em condições pouco dignas e recebem insuficientemente para sobreviver por quê? Faltou educação para que tivessem outros tipos de oportunidades? E como isso se deu? Suas condições de vida atuais derivam de quais circunstâncias históricas? Da escravidão? Da migração? Sem reparar os danos causados por essas circunstâncias limitam-se as possibilidades de universalização.
Como informaram as citadas autoras, no Sudeste brasileiro, região mais bem assistida pelo saneamento, a população desatendida é a das favelas e periferias, predominando pobres, negros, mulheres chefes de família. No contexto nacional, o déficit de atendimento é de quase 60% no Norte, 53% no Centro-oeste, 44% no Nordeste, 21% no Sul e apenas 10% no Sudeste, refletindo claramente as desigualdades do país. Da mesma forma, registra-se cobertura de água 50% maior e coleta de esgoto praticamente 100% maior para famílias com renda acima de dez salários mínimos.

Vê-se, o problema é complexo. Por isso mesmo, soluções simplistas e discursos demagógicos não são bem-vindos. Claramente, a mera solução de mercado não é a adequada para esse tipo de caso.
A metade da população brasileira sem acesso ao saneamento, como lembrado por Arilson Favareto, sabe bem a falta que lhe faz, sente o impacto sobre sua saúde e bem estar, sobre os déficits cognitivos de suas crianças e sobre a mortalidade infantil precoce. Algo que muitos políticos e funcionários da burocracia, nos escritórios confortáveis onde tomam decisões sobre a vida do país, nem de longe fazem ideia. Não por falta de informação. Por falta de experiência na pele mesmo. O mais provável é que a empatia para com os desassistidos do saneamento também seja escassa entre os grandes empresários e companhias internacionais a quem se quer delegar a responsabilidade pelas medidas de saneamento. Na lógica econômica em que vivemos atualmente, o critério para investimentos e decisões é um só: vai dar lucro? Quanto? Quando?
Nesse sentido, Favareto pergunta: “como a demanda concentrada em regiões mais pobres, precárias ou distantes irá se traduzir em oportunidades atrativas de negócios para o investimento privado?”. Mesmo com a licitação em blocos, ponderou ele, as condições desfavoráveis desses locais aumentam os custos, traduzindo-se em preços mais elevados ao consumidor. Portanto, conclui, a população mais pobre teria de usar parte de seu já magro salário para acessar seu direito básico de cidadão, o acesso à água e ao saneamento. Pela lógica da prioridade na universalização, as regiões mais bem servidas deveriam ser as últimas a serem contempladas com investimentos massivos, começando pela região Norte e restando ao Sudeste o fim da fila. Contudo, como bem aponta Favareto, ocorre exatamente o contrário. O interesse privado começou onde há rede coletora já instalada com recursos públicos, focando em lucro garantido.
Que fique claro: o problema não é o lucro em si. É o lucro acima da vida. É o lucro ainda quando antiético. É o lucro sem considerar o real atendimento às necessidades das pessoas, ou atendendo apenas o mínimo dessas necessidades, sem qualidade.
Nesse sentido, Anna Galeb, Dalila Calisto e Tchenna Maso indicam que o fracionamento da gestão das águas em diversos segmentos comerciais possibilita maiores e mais velozes lucros a eles (donos da concessão, fornecedores, grandes compradores, seguradoras e certificadoras, e especialmente financiadores) à custa das tarifas pagas pela população, sem que o acesso de fato ocorra onde é necessário. Além disso, ressaltam, as tarifas passam a depender não dos custos de produção nacionais, mas do preço da mercadoria água (como commodity) no mercado internacional.
Sabendo das limitações dos investidores, considerando os interesses políticos de ocasião e a robotização burocrática na aplicação de medidas descontextualizadas, fica no ar a pergunta: por que a nova lei delega a responsabilidade da universalização do saneamento? E ainda, agravando a questão, as mesmas autoras enfatizaram outras limitações da solução privatizante: é o financiamento público que continuará expandindo as redes de saneamento; e a gestão fragmentada resultante da lógica de mercado não permite compreender (e, portanto, não resolverá) problemas imbricados na universalização, como enchentes e escassez hídrica.
Favareto, na mesma linha, alertou para o aumento dos conflitos envolvendo água, que em 2019 superaram em número os conflitos fundiários no Brasil. Mostrou estar o novo marco aprovado distante do tratamento integrado e da tão necessária coordenação de políticas públicas. Por fim, resumiu a questão pontuando que reduzir o debate à controvérsia sobre investimentos privados no saneamento é simplificá-la em demasia. O ponto é que a universalização do saneamento deve ser tratada como parte dos direitos humanos – o que a lógica de mercado não tem condições de fazer – e, ao deixar de abordar e definir prazos, metas territorializadas, política tarifária, sob uma perspectiva de coordenação de políticas, inviabiliza-se o real acesso ao saneamento.
Nossos analistas do presente marco regulatório têm formações bastante distintas: estatística, direito, pedagogia, história, sociologia, biologia, bioquímica, engenharia civil e sanitária. Provêm de experiências profissionais também diversas: órgãos públicos, universidades, institutos de pesquisa, movimentos sociais. No entanto, tendem a apontar as mesmas limitações para essa nova lei, as quais se concentram em oito ordens de problemas: inconstitucionalidades; conflitos jurídicos infindos; precarização da ANA; fragilizações do pacto federativo; elevação das tarifas residenciais; desarticulação de instâncias importantes para a gestão de crises hídricas; contaminação dos lençóis freáticos por adiar o encerramento de lixões; e a mais importante delas, incapacidade de realmente universalizar o saneamento.
Finalmente, lembram que as experiências de países e cidades onde houve privatização nos últimos anos se mostraram ineficientes e custosas, além de acarretarem perdas de direitos trabalhistas, demissões, problemas com a produção de alimentos por causa da falta de acesso à água no campo, e contaminação por venenos e resíduos industriais decorrentes da distribuição das outorgas. Em razão disso, boa parte dessas regiões está reestatizando o serviço do saneamento.
Ao longo desta série, ressaltou-se o fato da universalização do saneamento ser uma das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), compromisso pactuado no âmbito das Nações Unidas por todos os países membros, tornando-o, portanto, uma questão de ordem internacional.
Como ressaltado por Suellen Oliveira, a necessidade não era de uma nova lei, mas de fazer valer as diretrizes da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), cujo modelo de construção é exemplar em termos de protagonismo social e efeitos sobre a redução das desigualdades.
O caso desse novo marco legal do saneamento permite discutirmos problema mais estrutural, ora refletido nesta lei: a insuficiência e deficiência de participação social nos processos decisórios sobre a vida coletiva. É responsabilidade do Estado prover seus cidadãos de condições de vida dignas. É responsabilidade dos cidadãos interessarem-se pelos processos de tomada de decisão relativos à vida pública, que afeta a todos e todas nós, e buscarem meios de participar, inclusive cobrando do Estado a garantia de espaços legítimos e efetivos de participação social, assim como a efetivação dos direitos constitucionais e humanos capazes de viabilizar maior presença em tais espaços (saúde, educação, trabalho…). O direito ao saneamento faz parte do mesmo pacote e depende da consideração aos aspectos ambientais, os quais, quando ignorados (como mencionado por Suellen Oliveira e Arilson Favareto) levam ao comprometimento da qualidade e disponibilidade da água. O próprio ODS 6 considera necessária a recuperação ecossistêmica e a gestão integrada dos recursos, a fim de alcançar a universalização do saneamento.
Apesar disso, não precisamos nos manter no dilema de Tostines, isto é: como sociedade, não participamos porque não temos condições adequadas e suficientes e não temos essas condições porque não participamos.
Na realidade, embora nem sempre o façam ou estejam organizadas para tal, parcelas da sociedade conseguem participar das decisões: há pessoas que trazem os debates necessários à luz, por meio de artigos e reportagens, de vídeos ou de entrevistas nos meios de comunicação e mídias sociais; realizam estudos técnicos e científicos; ensinam e educam; publicam em livros as questões prioritárias; mobilizam comunidades urbanas e rurais; realizam projetos para ampliar o acesso à informação, para dar transparência aos dados e decisões públicos, para aumentar o controle social; criam empreendimentos éticos. Há pessoas nos órgãos públicos buscando fazer valer os direitos constitucionais; outras, abrindo processos jurídicos para questionar as irregularidades políticas ou as omissões deficitárias sobre a sociedade; outras mais propondo projetos de lei e pessoas acompanhando sua aplicação. Há uma infinidade de cidadãs e cidadãos anônimos trabalhando, muitos voluntariamente, para potencializar nossa democracia. São pessoas auditando, fiscalizando, propondo, mobilizando, educando, cuidando. Muitas são as formas de participação da vida pública. A questão é ampliá-las em qualidade e quantidade.
Sendo uma sociedade ainda tão desigual, as condições de participação são muito diferentes. Na sociedade da escrita, nem todos têm informação e educação suficiente para compreender os textos. Muitos trabalham em situações extenuantes ou robotizantes, morando longe do trabalho e recebendo apenas o suficiente (ou quase) para sobreviver, de modo que não sobra muita energia ou tempo para contribuir. Na sociedade da alienação, do hedonismo e do imediatismo, muitos sequer percebem que podem fazer diferença. Outros tantos até imaginam poder contribuir, mas a acomodação e a indiferença pelo que é coletivo muitas vezes ganham a disputa. Sem contar ainda aqueles cujos interesses pessoais se beneficiam da desigualdade.
Dado o contexto, seria ingenuidade aguardar que o Estado fornecesse sozinho e por ele mesmo as condições adequadas de participação, formando os cidadãos para isso, propiciando espaços de consulta e deliberação coletiva e garantindo ambiente cotidiano seguro e saudável de trabalho e moradia. Por outro lado, as parcelas da sociedade que se mobilizaram em busca da existência de espaços de participação ao longo de nossa história desencadearam diversas conquistas nesse sentido. Uma delas, a Constituição de 1988, nos propiciou instrumentos jurídicos, ferramentas, espaços de articulação e interlocução, como conferências municipais/estaduais, orçamentos participativos, audiências públicas, referendos, plebiscitos, iniciativas populares, ações civis públicas, ouvidorias e defensorias públicas, Procon, representações via Ministério Público, comitês de bacias, conselhos municipais, estaduais e federais, câmaras técnicas, plataformas como os portais do cidadão, além dos posteriores e diversos aplicativos.
Logo no preâmbulo, nossa Constituição define a instituição do Estado democrático: “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos […]”. Dentre os princípios alicerçadores do Estado brasileiro destacam-se a cidadania e a dignidade da pessoa humana, conforme previsto no artigo 1º, incisos II e III.
A redemocratização do país na década de 1980 construiu uma estrutura mista de democracia representativa e democracia participativa: pelas eleições somos, teoricamente, representados nos plenários de governo; e pelos instrumentos de consulta popular e controle social temos meios de participação direta. Cada um desses modos de funcionar tem seu ônus e seu bônus.
Ser representado é mais cômodo. O cidadão exerce seu dever cívico votando e a partir de então conta com a responsabilidade, interesse e competência dos políticos eleitos para considerar suas necessidades e representá-lo durante aquele mandato. Ou seja, ao votar, o trabalho de cuidar da coisa pública (todos nós) é terceirizado, enquanto podemos “cuidar da própria vida”. Aparentemente confortável e prático. Contudo, a representação é um cheque assinado em branco. Nem sempre (geralmente não) o eleitor conhece o histórico profissional e pessoal do candidato, sua proposta e projeto de trabalho, suas habilidades e valores, seus vínculos, seus financiadores, seus compromissos, sua personalidade. Votamos e confiamos. Ponto. Ou votamos sem confiar mesmo. Falta de opção, dirão alguns. E, passivamente, aguardamos os resultados para depois aplaudir ou reclamar. Sem maior percepção das consequências.
Já a participação direta dá mais trabalho, bem mais. Eis os ônus: é preciso conhecer os espaços de participação e suas regras, aprender a se posicionar, a negociar, a debater. É preciso trabalhar em grupo (ah, o grupo!), lidar com ritmos e compreensões de mundo diferentes, estudar a legislação e os problemas com os quais se está lidando. Requer aceitar e lidar com os conflitos, fazendo deles oportunidade de inclusão e crescimento. Além disso, é tempo extra dedicado à participação cívica, voluntariamente. Não é nem o tempo do trabalho, nem o da família, nem o pessoal. É extra. E simultaneamente é também tempo que repercute em todos estes outros, pois o resultado de nossa participação afeta a vida familiar, pessoal e profissional.
E os bônus? A participação aumenta a consciência crítica, a compreensão de como funciona a sociedade, o senso de humanidade. Amplia o dicionário cerebral, a rede de contatos, a vitalidade. Empodera, responsabiliza, redimensiona nosso papel no mundo e o entendimento das necessidades das pessoas. Torna a vida em sociedade mais dinâmica. Faz com que de fato nos sintamos pertencentes a algo maior, à vida em comum, e com mais autonomia, já que co-produzimos a sociedade diretamente. A participação usa inteligência coletiva para solucionar problemas e propor novas formas de funcionar. Limita e organiza a ação dos representantes, os quais precisam considerar as petições, propostas e ajustes pontuados pela população. Mostra ao poder público que antes de ser poder, ele é serviço público. O acompanhamento das ações dos representantes e o diálogo com eles faz diminuírem as decisões em interesse próprio e de grupos próximos.
Felizmente, portanto, temos no Brasil ambas as situações: a representação e a participação direta. Espaços e tipos de participação poderiam ser em maior número, com melhores condições de acesso e de preparação. Contudo, o que importa aqui é que já existem. E precisam ser ocupados, mantidos, utilizados e ampliados.
O desconhecimento por parte da população quanto a esses direitos e sua proteção pelo Estado oportuniza a ação de setores conservadores, de intenção duvidosa e voltados apenas aos próprios interesses, de modo a ignorar ou desrespeitar as conquistas sociais alcançadas. Vigora ainda a mentalidade escravocrata colonial, segundo a qual uns valem mais que outros, uns “mandam porque podem”, outros “obedecem porque têm juízo”, criando uma relação de servilismo na sociedade que alimenta pequenas e grandes corrupções.
No Estado democrático e de direito se entende a necessária defesa da sociedade contra excessos no funcionamento da máquina estatal. Para isso, há divisão das funções entre os três poderes e mecanismos recíprocos de controle. Nossa Constituição amplia o controle, estendendo-o à sociedade através da presença e da ação organizada de seus segmentos. Cidadania e democracia andam de mãos dadas.
A participação se dá por meio de grupos temáticos organizados: movimentos sociais, ONGs, órgãos de classe, sindicatos, associações, redes, entidades beneficentes e outros coletivos. No mínimo se pode expandi-la com a adesão de quem desfruta de possibilidades materiais e de escolarização ao menos suficientes – aqueles, digamos, que precisam apenas ser sensibilizados para tal. Já ampliaria significativamente o debate e controle social, a partilha das responsabilidades decisórias e esforços de aplicação.
Para superarmos a sensação de inferioridade do brasileiro, o remédio e a vacina passam por esse aumento do nível de participação. Para além dos espaços participativos oficiais, a criação de projetos e ações que transformam o pedaço de mundo em que vivemos é também envolvimento legítimo e necessário. Nesse sentido, e para inspirar, uma coletânea de casos bem sucedidos, de todos os alcances e complexidades, daqui e de alhures, pode ser vista, por exemplo, no documentário Quem se importa, de Mara Mourão. Assumir o protagonismo de nossa história é fundamental.
Funcionamento democrático implica transparência de gastos, abertura ao diálogo e descentralização. Embora para os clãs tradicionais, componentes das oligarquias do país, tudo isso possa soar um tanto ameaçador, é na verdade oportunidade de reconciliação com os descendentes de nosso passado colonial e superação das mazelas dele herdadas. Uma nova ordem social, inaugurada pela corresponsabilidade típica de uma democracia de alta intensidade, não apenas beneficia aos atuais excluídos e miseráveis, como a todos e todas nós, componentes da sociedade. Inclusive às elites. Como vimos, a participação cidadã vai muito além da mera expressão de identidades e defesa de interesses grupais em espaços formais, sendo particularmente importante na elaboração e concretização de políticas públicas. A gestão se torna mais desafiadora e complexa, é necessário dizer, mas também mais econômica, includente e realista, ampliando a segurança e o bem estar de todos os habitantes. Abre-se espaço para um projeto de país, gerando prosperidade e aproveitamento do potencial humano presente no território.
Olhando para o novo marco, os autores e autoras desta série registraram sensibilidade quanto à necessidade de maior participação social na vida pública – neste caso, nas decisões quanto ao saneamento. Embora a lei esteja aprovada, o novo marco legal do saneamento ainda demandará de toda a sociedade intensa participação. Especialmente para que sejam feitos ajustes. Como trouxe Vicente Andreu no primeiro artigo, a aprovação apressada da nova lei, sem a devida participação social, tende a promover caos administrativo e jurídico e ao mesmo tempo é incapaz de universalizar o atendimento à população.
As autoras Adriana e Maria José recordam que também a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) prevê, para os países membros, o acesso à água de boa qualidade e à rede coletora de esgoto. Para a OCDE, significa efetuar a reabilitação urbana, adequar a infraestrutura relacionada direta e indiretamente ao saneamento, incluindo moradia, malha viária, entre outras, e considerar as alterações climáticas associadas ao aquecimento global; despoluir nascentes, evitando transtornos decorrentes de secas e inundações; empregar técnicas apropriadas ao tratamento de efluentes. Essa estratégia evidencia o vínculo entre condições sociais e ambientais, valorizando a vida, a equidade ambiental, o emprego, o acesso à informação e à participação pública no processo de decisão, o acesso à justiça ambiental e à educação ambiental. Pontuam a necessidade fundamental de adotar modelos que orientem e avaliem a qualidade dos serviços prestados, os resultados alcançados e os efeitos sobre a saúde de acordo com a percepção dos cidadãos. Portanto, uma vez mais, trata-se de investir na participação.
Sandra Akemi considerou a questão da participação por outro ângulo e detalhou o desafio de inserir a lógica do controle social e de risco no planejamento estratégico hidrológico, a fim de manter o equilíbrio econômico-financeiro e ambiental dos contratos de prestação universal do saneamento. Destaca ser obrigatório o controle do risco em razão da própria Constituição, apontando a relação entre a prestação universal do saneamento e os riscos ambientais, jurídicos, de mercado e imagem, à saúde e à vida. Para ela, o controle do risco deve ser feito a partir da estruturação de governança interfederativa e setorial, entendendo governança como habilidade da sociedade de prover serviços eficientes, equitativos e sustentáveis de saneamento, com articulação intersetorial das instituições para objetivos comuns e resultados efetivos. Akemi demonstra o papel dos Comitês de Auditoria Ambiental e dos comitês de controles internos das agências nesta delicada regulação, o que é reforçado pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Também convoca cada unidade regionalizada a realizar seus controles internos e a ANA (e agências estaduais) a incluir o valor ambiental em suas funções regulatórias.
Para bem concretizar o gerenciamento de riscos, pontua ela, são necessários diagnósticos, matrizes de risco, estudos e prognósticos quanto a medidas de precaução, considerando indicadores de clima, ar, solo, tecnologia, ecossistemas, saúde, defesa civil, entre outros, organizando diretrizes, ações e metas em planos estratégicos de curto, médio e longo prazos, conforme estabelecido nas normas e documentos internacionais, como exemplificam os relatórios da Comissão de Direito Internacional da ONU. Ainda, considera imprescindível existirem fundos específicos para cada um dos quatro pilares do saneamento, evitando o uso, inadequado por princípio, do já existente fundo de recursos hídricos, cuja função é outra.
O controle social é, portanto, a chave. Para explicá-lo, Akemi se fundamentou na legislação nacional e nos acordos internacionais assinados pelo Brasil: trata-se do conjunto de mecanismos e procedimentos de participação social, com chances reais de influenciar o processo de planejamento, decisório, de execução e de avaliação da política pública, neste caso, de saneamento. Ela nos lembra, também, dos mecanismos de monitoramento dos objetivos para atender aos direitos universais do consumidor, à saúde e ao meio ambiente (aqui incluído o saneamento), de acordo com a Resolução 32/248 de 1985 da ONU, destacando que o descumprimento da Resolução é passível de controle, inclusive judicial. Mais ainda, cita a integração do direito à água e o direito à saúde, conforme nossa Constituição, e menciona a Resolução 64/292 da ONU, segundo a qual o direito à água e ao saneamento é direito humano fundamental, sendo, portanto, de interesse público. Por fim, Akemi reafirma o compromisso do Ministério Público com a garantia da gestão da universalização, do controle social e do risco, cabendo a esta instituição atuar em prol de governança interfederativa proativa, mediante planejamento hidrológico de saneamento, com fundo próprio, para concretizar a universalização no contexto do federalismo cooperativo.
Vemos, portanto, existirem várias formas, recursos e instrumentos de participação, de controle social e de intensificação da democracia. Alguns podem ser mobilizados por pessoas individualmente, outros por organizações da sociedade civil, por instâncias governamentais e mesmo pela parcela eticamente orientada do empresariado.
Diante das dificuldades vividas nesse crítico momento histórico mundial, cabe a pergunta: a quem interessa a desmobilização da sociedade? A quem serviria a vitimização das pessoas, a sensação de impotência, o desinteresse pela coisa pública? O que teríamos a perder investindo em nós mesmos como sociedade? E a ganhar? A melhor resposta coletiva que podemos dar é sair da alienação e da desmobilização.
Enfim, você pode estar se perguntando, no que essa gente do Observatório acredita? Bem, na co-gestão. Com todos os desafios trazidos por ela. Na saída da menoridade, como dizia o filósofo Kant. Apesar do desafio, não há desculpas para adiar a maturidade. Por um lado, gritam os sintomas sociais e ambientais. Por outro, nunca houve tanta produção de tecnologias sociais e conhecimento sobre gestão e funcionamento de grupos e sociedades. Nem tantas pessoas dispostas a construir soluções coletivamente.
Que essa situação exemplar da aprovação do novo marco legal do saneamento nos sirva de motivação, enquanto coletividade, para ampliar nosso nível de corresponsabilidade, protagonismo e fiscalização, rumo à construção da sociedade que queremos.
Luciana Mello Ribeiro é bióloga, doutora em Educação, docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e coordenadora do Observatório Educador Ambiental Moema Viezzer (OBEAMV).