“O corpo feminino é profundamente político”
Sinéad Gleeson e Colombe Schneck, autoras convidadas da 21ª Flip, falam sobre aborto, direito ao corpo e escrita feminina
“Eu não tive escolha, precisava escrever.” A fala da escritora francesa Colombe Schneck ecoa a de Annie Ernaux, que, em “O Acontecimento”, descreve sua necessidade de narrar o aborto que fez em 1963. A experiência que Schneck conta em seu livro “Dezessete anos” é diferente, mas não menos importante: como a irlandesa Sinéad Gleeson diz no livro “Constelações”, o corpo feminino é politizado, e, quando mulheres contam as histórias de seus abortos, “nossas vozes ficam mais altas” e “mais difíceis de ignorar.”
Em seu livro – que foi lançado no Brasil pela editora Relicário, com tradução de Isadora Pontes e Laura Campos –, Schneck aponta que “o aborto não é um belo tema literário,” lembrando o momento em que Annie Ernaux conta que foi à biblioteca em busca de livros sobre o assunto e não encontrou nada além de alguns escritos médicos. Apesar das correspondências – Schneck conta que o livro de Ernaux foi, de fato, o impulso que a “obrigou” a contar sua história –, os relatos das autoras diferem fundamentalmente: quando Ernaux fez o procedimento, ele ainda era ilegal na França, ao contrário da experiência da outra autora.
No ensaio “Doze histórias de autonomia corporal (para as doze mulheres que partiam todos os dias)”, Sinéad Gleeson expõe relatos pessoais e de outras mulheres em relação ao aborto, à luz da legalização do procedimento na Irlanda católica. Ela escreve: “Falar do corpo na Irlanda, escrever sobre ele, é enfrentar esse roubo de autonomia. Examinar quem o controla ou tem direito a ele, e por que não existe legislação comparável que afete os homens.”
De formas diferentes, as autoras, convidadas da 21ª Feira Literária Internacional de Paraty, apontam para um fato que Schneck traduziu bem em palavras: “os direitos das mulheres nunca são garantidos.” Seja no Brasil, onde o aborto segue sem previsão de legalização, na Argentina, cujo presidente eleito promete revogar o direito, ou nos Estados Unidos, a grande democracia que acaba de anular a legalização que estava em voga há mais de 50 anos, os direitos das mulheres sobre seus próprios corpos nunca serão inabaláveis. Daí a importância de escrever esse desejo: nas palavras de Gleeson, “é preciso escrever. É preciso escrever o corpo. É preciso escrever si mesma.”
Uma escrita do corpo
Quando teve que fazer seu aborto, Schneck tinha dezessete anos, estava na escola, prestes a realizar o vestibular. Diferente de Annie Ernaux, ela veio de uma família liberal, com pais que lutaram, junto com os estudantes de maio de 1968, pelos direitos sexuais da juventude. “Eu era muito ingênua. Lembro-me, por exemplo, da minha raiva quando fiquei grávida, porque fui criada assim, as meninas eram iguais aos meninos, eu poderia ter a mesma vida que meu irmão. Ali, percebi que não era verdade, que eu tinha um útero, podia engravidar, não tinha o mesmo corpo que meu irmão ou os meninos da minha idade. Achei isso muito injusto. Fiquei com raiva. Eu vivia em uma espécie de utopia nesse ambiente liberal.”
Na adolescência, tomou as liberdades e a facilidade com que realizou o procedimento com uma leveza infantil que transparece no livro, sempre evocando o pôster do Snoopy que estampava a parede do quarto do menino que chamava de seu “amante”. Com o passar dos anos, no entanto, entendeu a gravidade e também a importância daquilo tudo: “Hoje percebo que a luta pela liberdade das mulheres é uma luta contínua. Vejo o que está acontecendo no Brasil, por exemplo: em uma grande democracia como o Brasil, o aborto ainda é proibido. É incompreensível. Acredito que não há democracia sem o direito ao aborto. Em uma democracia onde o direito ao aborto não existe, é como se a mulher permanecesse como cidadã menor”
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Foi também escrevendo o livro que Schneck passou a entender a importância do corpo na literatura, algo que Sinéad Gleeson defende em seu livro: também publicado no Brasil pela Relicário, com tradução de Maria Rita Drumond Viana, o subtítulo da versão brasileira do livro é justamente “ensaios do corpo”. Transitando entre as histórias de horror que passou enquanto jovem mulher hospitalizada, experiências com a maternidade e até uma breve vinda ao Brasil há alguns anos, uma constante nos variados ensaios do livro é a presença de um corpo feminino que é submetido às diversas violências comuns à vida da mulher.
“O corpo sempre fica para depois.” É assim que o primeiro ensaio do livro introduz sua temática. Em entrevista, a autora complementa: “minha escrita é muito ‘corporificada’. Por estar em um corpo de mulher e que passou muitos anos doente, em hospitais, posso ver o corpo como uma prisão, e isso é central na minha literatura. Na escrita, o pessoal é o coletivo, então a história do meu corpo é também a história dos corpos de outras pessoas.”
Do pessoal para o coletivo
Apesar de muito distantes geograficamente da realidade brasileira, as experiências descritas pelas autoras ressoam fortemente nas mesas de discussão da Flip, em Paraty. Das dificuldades de ser mulher como paciente em hospitais com médicos predominantemente masculinos às dores da luta por direitos como o aborto em um país profundamente religioso, essas histórias, mais frequentemente silenciadas – Gleeson se pergunta, “quem quer ouvir essa história?” – servem como ponto de identificação, independente do gênero e da nacionalidade.
Schneck conta que, quando escreveu “Dezessete anos”, recebeu muitas cartas de homens que contavam suas experiências e ressonâncias com o tema do aborto. Identificar a escrita feminina como apenas isso é ingenuidade quando autoras tratam se temas tão universais e que sobretudo não são reconhecidos como tal. A autora francesa conta: “O aborto é um direito que diz respeito às mulheres e também aos homens. É um direito para os homens também. Não devemos esquecer disso. Devemos lutar junto com eles.”
Do outro lado do mundo, Gleeson conta que se apaixonou pela literatura de Clarice Lispector, e disse se identificar com o ordinário de suas crônicas: “ela transforma o dia a dia, o mundano, em algo brilhante, através de sua escrita.” Apesar de não trazer nenhum convidado tão grande quanto Clarice Lispector – se é que existe alguém – ou mesmo Annie Ernaux – que esteve na Flip do ano passado – o evento é uma possibilidade de conhecer autoras como Sinéad Gleeson e Colombe Schneck, cuja obra foi pouquíssimo traduzida para o português – cada uma tem apenas um livro publicado no Brasil – mas pode ser uma porta de abertura para a transformação da realidade pessoal, e mesmo coletiva, de cada um.
Carolina Azevedo é parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.