O discurso político de Marina: a Nova Política
No quarto texto da série A análise dos discursos dos candidatos, produzida pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), os discursos da presidenciável Marina Silva: seus “elos” e apoiadores acreditam que Marina e seu novo partido é capaz de propor e implementar a chamada “nova política”, um significante vazio que se propõem a governar com “o que há de melhor na sociedade”, em que se incluem empresários, acadêmicos, técnicos, políticos independentemente de partido ou orientação política. Nesse ponto, até onde resistirá esse significante vazio da “nova política” e teste das eleições e a prática de governar, caso triunfe? Como governar para todos e “unir o país”, com o apoio de bancos e numa agenda econômica alinhada com o neoliberalismo?
Maria Osmarina da Silva, mulher, negra, 60 anos, originária dos povos da floresta é fruto da formação política da corrente progressista da igreja católica, através das Comunidades Eclesiais de Base, que se espalharam especialmente durante a ditadura militar no Brasil. Alfabetizada na adolescência, se formou como professora de história pela Universidade Federal do Acre. Depois de ter exercido os cargos de deputada estadual e federal, foi a Senadora mais jovem eleita à época, com 36 anos, seguindo como ministra do meio ambiente (a primeira do governo Lula) e candidata à presidência da República pela terceira vez, agora, pelo partido que criou: a Rede Sustentabilidade.
Tal partido, se define como “espaço de atualização da política”, “suprapartidário”, como um movimento, organizado no padrão de uma rede, reunindo pessoas “de luta e paz”. Tenta, assim, fugir dos padrões tradicionais dos partidos, elegendo duas pessoas como “porta- vozes” ao invés da autoridade de um presidente, vagas que devem sempre ser ocupadas por uma pessoa jovem e outra “mais experiente”, e também um homem e uma mulher, com o intuito de estimular a paridade de gênero na política.
Na coligação “Unidos para transformar o Brasil”, tem como vice Eduardo Jorge, do Partido Verde (PV), um médico e sanitarista baiano que tem em comum com Marina não só o início de suas carreiras políticas pelo Partido dos Trabalhadores (PT), mas também o fato de terem saído do partido por divergências ainda durante o período do governo Lula. Além disso, foram colegas no PV, e ambos concorreram às eleições de 2014 e defendem especialmente uma pauta ambiental para país.
A narrativa da identidade [1] de Marina construída em seus discursos, traz o imaginário da superação e da ascensão social – “um retrato do Brasil”. De uma família de trabalhadores extrativistas, analfabeta, criada nas trilhas de um seringal nos rincões da floresta amazônica aos caminhos da política nacional.
É sua identidade de “ambientalista” que desperta tradicionalmente o imaginário social de seus apoiadores, em sua trajetória em defesa da floresta em pé (e com suas gentes), sob o significante vazio [2] do “desenvolvimento sustentável”. Seus discursos, inclusive, enfatizam o “reconhecimento internacional” que conquistou, num mundo cada vez mais preocupado com as mudanças climáticas e o mercado de carbono.
Sua identidade como “evangélica”, convertida após passar por graves problemas de saúde, também é importante de ser compreendida num país cuja população religiosa pentecostal ou neopentecostal é ascendente, especialmente entre as classes populares. Mesmo que reforce em seus discursos sua posição resolvida em favor do Estado laico, é relevante o crescimento da bancada evangélica e suas pautas conservadoras como um grupo de interesse na representação política, contando muitas vezes com a figura do pastor como cabo eleitoral ou mesmo representante direto da vontade divina.
Também sua identidade construída como política “íntegra”, “ética”, não envolvida no cenário de “acusações”, “delações” e “escândalos políticos” que as páginas dos jornais se transformaram, tem sido bastante exaltada pela candidata e seus “elos” apoiadores, especialmente quando responde à críticas sobre o que seria sua “ausência” ou mesmo um “não posicionamento, diante dos principais eventos que embalam a política nacional.
Apesar de ter um índice de eleitores considerável nas pesquisas (maior sem Lula), não tem sido cogitada, ao menos publicamente, para alianças nem à esquerda, e nem à direita. Também por isso, parece ter antagonistas e críticos de todos os lados do que tem sido a política brasileira, refletindo o ambiente de polarização da sociedade.
Assim, pela ala mais à direita, seus antagonistas a veem como “melancia: verde por fora, vermelha por dentro”. O fato de ter sido petista por muitos anos aciona o ódio e a rejeição construída (também discursivamente) em torno dos membros, simpatizantes, eleitores e mesmo ex-membros do Partido dos Trabalhadores. Nesse ponto, vale até revirar o início da trajetória política de Marina, com acusações de comunista e pró-luta armada de guerrilha.
Mas é exatamente dessa identidade que Marina busca se afastar, “surfando a onda” do anti- petismo que se instaura no país. De modo que, para a ala mais à esquerda, Marina é criticada por “oportunismo político”, e por ter posicionamentos que a aproxima dos “apoiadores do impeachment da ex-presidenta Dilma”, com a “glorificação da Operação Lava Jato” que revelou, segundo ela, “a verdade”, numa fé (quase que cega) ao “culto à toga” do que tem sido a atuação do judiciário brasileiro.
De ambos os lados, há críticas quanto à sua suposta “fragilidade”, em referência aos problemas de saúde que enfrentou e à aptidão ao cargo que disputa. Nesse ponto, devemos considerar o peso do machismo em desqualificar uma candidata mulher.
Mas é em torno do significante vazio do que chama “a nova política” que Marina tem construído seu campo discursivo para o pleito eleitoral 2018. Sob o olhar da teoria do discurso, analisamos discursos [3] de Marina Silva e seu partido desde o segundo semestre de 2017 até agosto de 2018.
Analisamos que o discurso de Marina se constrói em torno da identificação de uma demanda e insatisfação latente na sociedade brasileira, que tem vivido, especialmente no período recente, paixões exacerbadas em relação à política e ao sistema político de modo geral: a “sociedade está indignada”, “insatisfeita com a política”, “não se sente representada” e “quer ser protagonista numa nova política”.
Ela e seu partido identificam a “crise política” como principal problema a ser superado no país, pois dela derivariam as demais, como a “crise econômica”, em que destaca a alta taxa de desemprego, e a “crise democrática”, com a “ilegitimidade” e “queda da credibilidade do sistema político” e suas instituições. Se refere à última eleição como “fraude e estelionato eleitoral”, em que demonstra ressentimento pelos seus adversários que teriam feito a “campanha do marqueteiro”, da “mentira”, do “dinheiro” e da “agressão”.
É partir deste marco diagnóstico [4] que seus discursos criam uma cadeia de equivalências [5] articulando significantes flutuantes e vazios em torno do ponto nodal [6] “da nova política”, para delimitar as identidades políticas – um “nós”, em antagonismo à um “eles”.
Assim, o marco de prognóstico, a nomeação de sua identidade política – “nós”, se dá sob o significante vazio do “novo”: “a nova política”, “um novo partido”, “um partido de novo tipo”, “um novo modelo de governabilidade”, “temos o novo para apresentar à sociedade”. Diferentemente do que poderia se achar inicialmente, não é a “sustentabilidade”, mas a chamada “nova política” torna-se o ponto nodal de seu discurso, articulando em seu entorno uma cadeia de equivalências que tenta preencher as principais demandas e insatisfações manifestadas pela sociedade, diante do quadro de “indignação” diagnosticado, ante uma classe política que é uma “fraude eleitoral”, “mantém e aprofunda a corrupção sistêmica”.
Ou seja, um dos recursos utilizados em seus discursos se dá em torno do que seria a “falta constitutiva” da sociedade, em que Marina aciona uma cadeia de equivalências, buscando preencher o desejo por maior protagonismo e influência, onde coloca: “A saída é a aliança com a sociedade”, “vamos usar a inteligência da sociedade”, “reforçar e trazer pra dentro da política o protagonismo das pessoas”, governar com “o que há de melhor na sociedade”, “a sociedade que acredita numa nova postura”.
Juntamente com o preenchimento dessa falta constitutiva, Marina também insere em sua cadeia de equivalências as nomeações de seu “nós”, de suas identidades políticas construídas discursivamente, nas quais inclui algumas das propostas que defende no pleito 2018, conforme ilustração abaixo:
Sendo a construção das identidades políticas sempre em oposição à outra identidade, Marina e seu partido nomeiam como par antagonista – “eles”, através do significante vazio da “política de conchavos”, a “velha política”, “modelo berçário da corrupção e de solapamento do interesse público”. Chega a nomear “Temers, Renans, Jucás, Padilhas e mais de 200 parlamentares envolvidos em investigações”, como “ilegítimos” e “fraude eleitoral”, que “se escondem dentro dos palácios”, “sob o manto do foro privilegiado”. Deste modo, a “política de conchavos”, “a velha política” funciona como ponto nodal articulando os seguintes elementos:
Assim, podemos dizer que a agenda discursiva de Marina disputa como hegemonia da ordem social os significados do que seria uma “nova política”, “a mudança”, “a ética”, “a verdade” em antagonismo ao significado da “velha política”, da “corrupção sistêmica” e da “crise política”. Entra na questão das alianças partidárias, colocando que uma aliança com a “velha política” seria “entregar a solução para os mesmos que criaram os problemas”.
Como forma de mobilizar, é comum que os discursos façam uma reconstrução “mítico- histórica” do passado, quase sempre visto como glorioso, e que estariam sob ameaça ou perigo. Esse seria o marco motivacional, em que Marina destaca os 30 anos da Constituição Federal de 88 como o período de “consolidação das instituições públicas, direitos sociais e estabilidade política e econômica” que estariam “indo abaixo com as revelações da Lava Jato”.
É também comum que haja nos discursos um apelo emotivo que destaque sofrimento como forma de mobilizar, e aponte a sua identidade política como solução para os problemas postos. Assim, Marina discursa: “o povo brasileiro sofre com a desigualdade, injustiça social, violência e desemprego”.
A emoção também é acionada como forma de conquistar corações e mentes, trazendo para seu programa político o eleitor que se encontra desacreditado, tratando o pleito eleitoral de 2018 como a grande e quase única oportunidade de realizar seu desejo de mudança: “agora é a hora”, “é hora de mudar”, “não dá pra querer mudar e não mudar”, “NÃO-DÁ-MAIS!”, “#2018 chegou”.
Bandeiras do Brasil nas cores do partido flamejantes num teatro de arena, onde Marina encontra-se ao centro, juntamente com algumas das figuras públicas de seu Partido. Sob o lema motivacional (e ambicioso) de refundar a república, Marina esbraveja ao final: “É preciso refundar a república e inaugurar uma nova etapa democrática”. E é com esses símbolos, slogans e palavras de ordem que Marina termina sua fala emotiva sob aplausos, no lançamento de sua pré-candidatura.
Já durante a campanha eleitoral, é notável a adoção de um tom discursivo mais incisivo e esbravejante por Marina, com o uso de imperativos e exaltações com forte carga emocional, quase conduzindo à uma espécie de transe. Isso demonstra não só a habilidade oratória de Marina, mas, também semelhanças com o tom discursivo e performático de um culto evangélico. Tem utilizado também uma expressão que se parece à uma oração franciscana: “pra face da mentira, a verdade. Pra face da preguiça, o trabalho. Pra face do desânimo, a esperança; do ódio, a união.” Talvez a política brasileira esteja mesmo precisando de um descarrego.
Também a fala de opinião pública tem sido bastante utilizada por Marina, não só através do recurso discursivo em elencar o que as pessoas querem, como “o Brasil quer um novo ciclo de prosperidade”, a “sociedade quer renovação”, como também acionando os temas “quentes” do momento, disputando, inclusive, com os demais candidatos concorrentes. Assim, observa-se um apelo crescente a sua figura enquanto “mulher, mãe e negra”, que não foi tão acionado nas campanhas anteriores. Isso se deve não somente ao fato de ser a única candidata mulher e negra, mas por estar disputando também com o machismo e racismo presente em alguns dos demais candidatos e na própria sociedade. Marina também tem usado bastante sua história e trajetória de vida, das dificuldades na “infância pobre e simples”, e especialmente seu trabalho como “empregada doméstica”, como forma de sensibilizar e criar identificação com as mulheres trabalhadoras, criando o imaginário da ascensão social.
Devido à sua vivência religiosa, comumente Marina aciona um discurso de perspectiva moral e quase messiânica, tal como: “a educação fez um milagre em minha vida”, “é chegada a hora do futuro”, e “nós somos a verdade”.
Concluindo
Significantes vazios como “o novo”, “a mudança” são comumente explorados na política, especialmente nas campanhas eleitorais. São termos que costumam preencher as expectativas e esperanças pelo porvir, pela ideia de futuro e de progresso social. Marina e seu partido acionam esse simbólico o tempo todo em seus discursos.
Em seu “chavão” também bastante utilizado, coloca que deseja que o Brasil seja “economicamente próspero, culturalmente diverso, politicamente democrático, socialmente justo, ambientalmente sustentável”. Uma cadeia de significantes vazios articulados em que cada leitor, ouvinte, expectador, cidadão, entende o que quiser de cada um desses elementos.
Em momentos de crise, acirram-se os conflitos e antagonismos que existem dentro da própria sociedade, especialmente a sociedade brasileira, marcada pela desigualdade social em seus percalços nos caminhos e descaminhos para estabelecer e fortalecer uma cultura democrática. O discurso de Marina se propõem a mobilizar os “indignados”, os “desacreditados” com a política, os “não petistas”, os críticos ao governo Lula e Dilma mas não tucanos, o voto de “fiéis”. Mas será que o discurso da nova política vai conseguir conquistar os 45% de pessimistas ou muito pessimistas [7]?
Seus “elos” e apoiadores acreditam que Marina e seu novo partido é capaz de propor e implementar a chamada “nova política”, um significante vazio que se propõem a governar com “o que há de melhor na sociedade”, em que se incluem empresários, acadêmicos, técnicos, políticos independentemente de partido ou orientação política. Nesse ponto, até onde resistirá esse significante vazio da “nova política” e teste das eleições e a prática de governar, caso triunfe? Como governar para todos e “unir o país”, com o apoio de bancos e numa agenda econômica alinhada com o neoliberalismo [8]?
De fato, a “nova política” vai ter que governar com as contradições de uma sociedade polarizada e também com os demais representantes eleitos pelo voto popular nas eleições 2018, e esses podem passar longe e não representar “o que há de melhor na sociedade”. Talvez por isso seus antagonistas há muito não a veem com o olhar do novo e nem da esperança, especialmente após a aliança política realizada no segundo turno de 2014, com o então candidato Aécio Neves.
ESPECIAL
Este texto faz parte da série especial “A ANÁLISE DE DISCURSO DOS CANDIDATOS”. Entre os discursos examinados estão os das candidaturas Marina Silva, Jair Bolsonaro, Lula, Geraldo Alckmin, Ciro Gomes e Guilherme Boulos.
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*Thais P. Bittencourt, Jorge O. Romano, Alex L. B. Vargas, Annagesse de Carvalho Feitosa, Paulo A. A. Balthazar, Yamira R. de Souza Barbosa. Os autores – professor, doutorandos e mestrandos – conformaram no CPDA/UFRRJ um grupo de reflexão sobre análise de discurso populista fundado na proposta de Laclau e Mouffe, coordenado pelo Dr. Jorge O. Romano, do qual saíram textos específicos sobre o discurso de seis candidatos a presidência que estão sendo publicados no Le Monde Diplomatique Brasil online, assim como um artigo com a visão geral dos resultados alcançados, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil na sua edição de Setembro de 2018