O teatro falho de Bolsonaro
Se acreditar basta, comprovar não é preciso. A perigosa mistura de autoritarismo evangélico e marketing digital cegou metade da massa de votantes. Durante Bolsonaro vivemos a irrupção do descrédito na ciência
Conteúdos inconscientes têm vida própria. Não estão submetidos à vontade ou aos controles da razão. Assim, referir-se ao inconsciente de alguém é um exercício de perceber, entre hiâncias e equívocos, onde a parcela não consciente da linguagem se manifesta.
Mesmo dissidentes da psicanálise freudiana, como C. G. Jung, não discordaram que sonhos, chistes, atos falhos e sintomas são as formações por excelência do inconsciente. É isso, portanto, que psicanalistas escutam na clínica ao conduzir tratamentos. A partir da fala livre, técnica imortalizada por Freud, é no divã que tais irrupções preferencialmente se dão, fornecendo material de trabalho para analistas e analisantes.
As interpretações dessas formações inconscientes não são, no entanto, exclusivamente produzidas na clínica. Se a psicanálise se debruça sobre as narrativas produzidas no divã, não significa que, fora dele, o arcabouço teórico e clínico dela se torne inútil. Toda vez que alguém fala, seja no cercadinho de repórteres, seja nas lives de blogueiro geral da república, está sujeito a ser golfado por um retalho de inconsciente, que se manifesta inexoravelmente pela via da linguagem.
A teoria dos atos falhos como formações do inconsciente nasceu com o livro Psicopatologia da vida cotidiana, de 1901. Nesse trabalho, Freud caracterizou os atos falhos como enganos de fala e lapsos de memória. Assim, quando falamos algo que não queríamos dizer, quando lemos algo diferente do que está escrito ou quando esquecemos o nome de alguém, estamos diante de atos falhos. Lacan resumiu o conceito brilhantemente: “atos falhos são, no fundo, atos bem-sucedidos, já que as palavras que tropeçam, são as palavras que confessam”.
Esses equívocos de diálogos cotidianos, aparentemente insignificantes, falam de desejos inconscientes. É porque agem à revelia que esses materiais são interpretados analiticamente. A hipótese freudiana é de que esses desacertos, além promoverem deslocamentos, condensações e distorções de conteúdos inconscientes, também podem reverberar por meio das ações externas de um sujeito.
Tomando a teoria freudiana dos atos falhos, tenho que a passagem de Bolsonaro na presidência promoveu um curioso (te)at(r)o falho. Não apenas porque os atos estão contidos na própria palavra, como sugerem os parênteses, mas sobretudo porque a análise da sequência de atos falhos de Bolsonaro traduz o desenrolar, com direito a gran finale, da desastrosa passagem dele como chefe do executivo.
Aliás, foi de chefe do executivo que Bolsonaro se intitulou quando tentava atacar o ministro Barroso: “nós temos um chefe do executivo que mente”. Nada mais confessional para alguém que mentiu em média quatro vezes por dia. O lema bíblico de que a verdade libertaria, lá pelas tantas, acabou confrontado com outra tijolada falha na nossa cara: “A mentira é sagrada”, disse Bolsonaro em outra live. A estratégia era clara: ainda que fosse mentira, se o significado assume dimensão sagrada, contestá-lo já não é uma tarefa a que muitos se disporiam. Mentindo ou falando meias verdades, a estratégia sempre foi colar a imagem de Bolsonaro à de Deus, aquele que supostamente não mente para ninguém, um mito. Constatar atos falhos dessa envergadura em Bolsonaro é, para o tribunal mambembe dos psicanalistas selvagens, a confissão do crime de difusão de fake news. Afinal, já está claro que foram essas notícias falsas que cooptaram os velhinhos e os desatentos que construíram a ascensão desse que entra para a história como um dos sujeitos mais abjetos que o Brasil já pariu.
Se acreditar basta, comprovar não é preciso. A perigosa mistura de autoritarismo evangélico e marketing digital cegou metade da massa de votantes. Durante Bolsonaro vivemos a irrupção do descrédito na ciência. Não que o Brasil já não fosse craque em mandar às favas a educação, mas dessa vez a ciência foi protagonista porque além de Bolsonaro houve a peste. Quando discutia sobre a necessidade de vacinação de crianças, Bolsonaro disse: “A ciência mostra que eu estava errado”… Sim, como se isso fosse novidade para alguém aqui na Terra.
Nas considerações finais do último debate, Bolsonaro não desfez a tradição de falhar lamentavelmente e disse que“…se fosse a vontade de Deus, estava pronto para cumprir mais um mandato de deputado federal…”. Como se a gente também já não soubesse, àquelas alturas, que ele nunca tinha sido presidente mesmo.
Depois de escangalhar a máquina pública e se tornar o primeiro presidente que não conseguiu reeleição, logo antes de fugir para os Estados Unidos, Bolsonaro fez então uma live derradeira, já caído do trono. Ao longo de um discurso choramingado, disse: “se cheguei aqui, teve um propósito. No mínimo, atrasar quatro anos o nosso Brasil aí.” A tentativa de golpe sofrida pelo Estado brasileiro no dia 08 de janeiro, se tomamos esse rol de atos falhos de Bolsonaro, mostra como Freud foi perspicaz. Confissões são, desde o antigo Direito Romano, a prova de ouro das sentenças condenatórias. Atos falhos são confissões. Se a lógica inconsciente estiver certa e as instituições democráticas funcionarem normalmente, ele não volta mais.
Paulo Ferrareze Filho é psicanalista, professor e pesquisador (IP/USP e Uniavan/SC)