Os conflitos “ignorados”
Atualmente existem, aproximadamente, 28 países que estão passando por conflitos armados nos continentes africano e asiático. Mas, não vemos a mesma cobertura da mídia para a crise de refugiados que eles geram, como vemos com a Ucrânia
O clima de tensão e instabilidade deixa na boca o gosto amargo do medo. Pelas ruas, poeira e escombros. Não se ouve mais o som dos pássaros, somente o silêncio ensurdecedor que pode a qualquer momento se converter em altíssimos e mortais decibéis. O som seco dos tiros e as explosões que fazem tremer os prédios, a terra e as carnes, deixando como rastro o sangue dos civis inocentes, mortos, jogados pelas ruas. Longas filas dos desesperados que buscam ajuda humanitária compõe a paisagem pois a água e a comida ficaram escassas.
No fundo dos olhos da população há o mesmo tom cinzento, a cor opaca do medo. O ataque pode vir a qualquer momento e por qualquer lado: pelo ar, por terra ou pelo mar. Milhares de refugiados[1] sem destino caminham levando suas crianças nas costas; clamam pelo exílio em países vizinhos. Saem de sua terra, deixando para trás suas casas e seus bens mais preciosos: sua história e sua identidade. Crianças órfãs caminham sem direção, pais enterram seus filhos e a penumbra da destruição paira; sobre os escombros soterrados os bens, os sonhos e a esperança; vidas completamente transformadas em um imenso e gelado mar de incertezas.
Se perguntarmos sobre qual conflito estamos elencando, provavelmente, sua resposta será imediata: trata-se da Ucrânia. De fato, o relato representa muito bem o conflito geopolítico que tem assolado a Eurásia hoje. Mas o que talvez você não saiba é que existem na atualidade aproximadamente 28 países que ou estão passando por conflitos ou registram violentos combates armados.
Sobre tantos conflitos e violência a mídia nos oferece o silêncio.
Ora, porquê que simplesmente não sabemos nada sobre eles? Por que paira certa seletividade sobre quais conflitos “aparecem” e quais simplesmente não são noticiados? Em alguns deles permeiam motivações políticas, em outros, religiosa, mas o que de fato é uma questão comum entre eles corresponde: a vida! O direito à vida que consta no artigo 3° da Declaração Universal dos Direitos Humanos que reza: “Todo o ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança social.” Um direito natural posto à prova constantemente em diversos lugares do mundo.
Acompanhamos desde as primeiras horas do dia 24 de fevereiro deste ano (2022), as ações do presidente russo Vladimir Putin. Ao toque da ponta de nossos dedos tivemos acesso em tempo real desde ao anúncio de lançamento de uma operação militar no leste da Ucrânia até as imagens dos ataques em larga escala em território Ucraniano. Todos os dias, acompanhamos através da grande mídia notícias referentes ao conflito Rússia X Ucrânia e seus desdobramentos por todo o mundo; ressaltamos que tal “rivalidade” entre estes países não é nova.
Assistimos atônitos os ataques aéreos russos em território ucraniano; mas na mesma semana, países como o Iêmen, Síria e Somália também registraram ataques aéreos. No caso do ataque ao Iêmen a nação responsável foi a Arábia Saudita, segundo registro dos Médico Sem Fronteiras. No caso da Síria, houve ataques de Israel à combatentes pró-Síria pelo ar, segundo o Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSDH sigla em inglês), dando prosseguimento a guerra na Síria que se iniciou em 2011 e ainda persiste. Os Estados Unidos usaram um drone na Somália, segundo publicação no The New York Times, causando algumas mortes e destruição.
Vale ressaltar que a guerra civil no Iêmen é considerada pelo Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (Acnur) como “a maior crise humanitária do mundo” atual, com estimativa de cerca de 377 mil mortos. O país tem cerca de 3,6 milhões de deslocados internos, 24 milhões de vidas necessitando de suporte humanitário.
Dando prosseguimento aos conflitos no continente africano, não podemos deixar de abordar a guerra na Etiópia que simplesmente está destruindo o país. A violência, a ocorrência de crimes de guerra e a fome têm gerado uma crise humanitária sem precedentes. Situação muito semelhante vive o Afeganistão que, devido à falta de ajuda por outros países após a retomada do Talibã ao poder, viu seu país mergulhar ainda mais na destruição e na guerrilha. A ONU estima que cerca de 23 milhões de pessoas do Afeganistão (metade da população do país) poderão passar fome nos próximos meses.

A Nigéria é outro um exemplo de conflito ignorado pelo Ocidente. O país possui a maior população e território do continente africano, aproximadamente 140 milhões de pessoas, e hoje é palco de conflitos devido a atuação do Boko Haram – organização terrorista atuante neste país, fortemente militarizada e com o objetivo de erradicar a ocidentalização no país. Desde sua criação, o grupo ficou conhecido por diversos ataques a igrejas, bares e escolas. Não há como mensurar o impacto que o Boko Haram teve na Nigéria, mas estima-se que gerou mais de 20 mil mortos e quase 2 milhões de refugiados.
O Sahel, região semiárida entre o Deserto do Saara e as savanas do sul, também merece destaque. A região divide o continente africano em dois: A África majoritariamente islâmica ao norte e cristã ao sul. Tal região conta com a presença de diferentes grupos étnicos e é palco de ameaça terrorista, limpezas étnicas e extrema violência. Iniciou-se em 2022, em meio a um aumento de desordem, com níveis de violência política organizada aumentando. O conflito na região é impulsionado por uma insurgência jihadista centrada nos estados de Burkina Faso, Mali, e Níger, que são os mais afetados pela crise, causando efeitos colaterais nos estados litorâneos vizinhos da África Ocidental, como Costa do Marfim e Benin.
Voltando para o continente asiático, temos o aprofundamento da crise política em Myanmar, que está levando a ataques armados, refletindo no impacto humano e colapsos nos sistemas do país. Apesar de toda a crise, os demais países parecem não se importar muito quanto a ele; além de preocupações a médio e longo prazo sobre possíveis confrontos por parte de países envolvendo Estados Unidos, China e Taiwan e o reflexo de uma possível volta ao acordo nucelar de 2015 por parte do Irã; por exemplo; as crises na vizinha Venezuela, entre outros.
Além disso, vimos em 2021 a intensificação do conflito Israel-Palestina, nas regiões de Israel e Gaza; e em cidades como Jerusalém, Cisjordânia, dentre outras. A pandemia da Covid-19 causou também uma enorme crise humanitária e impulsionou o aumento do custo de vida, falta de insumos, desigualdade, desemprego e outros impactos. Em concomitância, teve tomada do poder na Tunísia, protestos na Colômbia e golpe no Sudão.
Outro país que sazonalmente aparece nos noticiários é o Haiti (América Central Insular), por suas guerras de gangues, desastres naturais e crises políticas que se arrastam até hoje. A preocupação de novas frentes Jihadistas na África (Moçambique e Congo) preocupam também, pois está ocorrendo batalhas entre os Estados e militantes islâmicos, apesar da intervenção ocidental e várias guerras por drogas, principalmente no México; dentro outros conflitos.
Por fim, voltando ao conflito Rússia X Ucrânia, observamos o maciço número de refugiados fugindo da guerra ingressando em diversos países sendo a Polônia a maior porta de entrada, porém, nem todas as pessoas conseguem cruzar a fronteira por causa de racismo e até xenofobia[2]. Dias atrás pudemos ter acesso pelo noticiário da TV aberta, a uma reportagem que apresentava a situação de africanos que moravam na Ucrânia e estavam com dificuldades para passar na fronteira, dificuldade que não estavam sendo enfrentadas por refugiados brancos, apesar da negativa das autoridades.
A própria mídia internacional cometeu alguns episódios de racismo ao noticiar o conflito. “Este não é um lugar, com todo o respeito, como o Iraque ou o Afeganistão, que tem visto conflitos violentos há décadas. Esta é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia, cidade onde você não esperaria isso!”, disse um correspondente da rede norte-americana CBS News.
Já em entrevista à CBS, no dia 26 de fevereiro, um ex procurador geral da Ucrânia disse: “É muito emocional para mim porque eu vejo europeus com olhos azuis e cabelos loiros sendo mortos todos os dias com mísseis de Putin, seus helicópteros e seus foguetes”. Houve ainda, publicação de uma coluna no tabloide britânico, The Telegraph, no qual um jornalista escreveu: “Eles se parecem tanto com a gente. Isso é o que faz ser tão chocante. A Ucrânia é um país europeu. Sua população assiste Netflix e tem contas no Instagram, votam em eleições livres e leem jornais não censurados. A guerra não é mais uma coisa que atinge populações empobrecidas e remotas. Pode acontecer com qualquer um”.
Há a seletividade de acolhimento de refugiados, como por exemplo a Polônia que acolhe os refugiados ucranianos, porém, impede a entrada de refugiados vindos do Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria. Questões que precisam ser colocadas à luz da crítica e discutidas quando se trata de igualdade sobre o tratamento das questões humanitárias, dos conflitos e dos refugiados no mundo. É certo que haverá outros impasses e exemplos envolvendo o racismo e xenofobia, infelizmente.
Segundo o Acnur, o número de pessoas refugiadas pode chegar a 4 milhões. Esta pode se tornar a maior crise de refugiados da Europa neste século. Já está em andamento operação que visa apoiar mais de 660 mil pessoas forçadas a se deslocar da Ucrânia para outros países. Estima-se ainda que 12 milhões de pessoas dentro da Ucrânia precisarão de ajuda e proteção. Todos os países vizinhos, até agora, mantem suas fronteiras abertas para refugiados vindos da Ucrânia. A maioria se deslocou para Polônia, Hungria, Moldávia, Romênia e Eslováquia. As autoridades nacionais estão assumindo a responsabilidade pelo registro, acolhimento, alojamento e proteção dessas pessoas refugiadas. Há ainda países fora da Europa que demonstraram sinalizações de ajuda humanitária; o Brasil é um deles que anunciou a implantação de visto humanitário para refugiados advindos da Ucrânia. Enquanto isso, a cada momento aumenta o número de mortos entre militares russos e ucranianos, além de civis ucranianos. Cada país tende a inflar o número de baixas do outro país, por diversas questões, inclusive psicológicas e de autoestima da tropa; ficando difícil mensurar os números reais até o momento.
As guerras e conflitos continuam. Pessoas a cada dia vêm-se obrigadas a fugir de seus países, perdendo suas identidades, deixando suas histórias. Não há vida mais importante que outra. Um dos meios mais eficientes para o encerramento da maioria dos conflitos é a diplomacia e intervenções de paz por meio de outros países. Cabe não nos esquecermos dos demais conflitos, trazendo à luz e denunciando a violência, a fome e as mortes que eles trazem às suas populações, pois não é possível existir seletividade na solidariedade com quem sofre as consequências de uma guerra ou conflito armado.
Fabrício Robson de Oliveira é especialista em Direito Internacional; Bacharel em Direito; Pesquisador em Segurança e Defesa – [email protected]
Mariane Motta Ferreirinha é licenciada e mestre em Geografia e especialista em dinâmicas urbano-ambientais e gestão do território – [email protected]
[1] Segundo o Alto Comissariados das Nações Unidas para os refugiados (ACNUR), refugiados são pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados.
[2] A xenofobia consiste no medo e rejeição a pessoas de outras nacionalidades promovendo o preconceito e a hostilidade a esses sujeitos.