Topografia da memória: traços da normal-excepcionalidade na experiência alemã e brasileira
O que a experiência da memória social alemã e polonesa em relação ao Estado de Exceção nazista pode ajudar na compreensão da ditadura civil-militar brasileira e o avanço da extrema direita?
Longe de querermos traçar qualquer tipo de comparação entre os Estados de Exceção nazista e brasileiro, pretendemos trazer algumas contribuições para a construção e preservação da memória. Apresentaremos um breve relato de um intercâmbio em lugares de Memória e Campos de Concentração realizado por um coletivo brasileiro denominado Aparecidos Políticos composto por integrantes de uma geração que não viveu a ditadura brasileira. O projeto foi realizado em parceria com a autora e diretora alemã, Christiane Mudra, no âmbito do Programa Funarte Retomada 2023 – Artes Visuais do Ministério da Cultura.

Entre os dias 3 e 18 de setembro, visitamos duas cidades alemãs (Munique e Berlim) e o Campo de Concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia. Foram cerca de 15 lugares de memória visitados nos dois países. Fomos a alguns lugares importantes como o Campo de Concentração de Dachau, a “Konigsplatz” (a praça onde os nazistas realizavam atos públicos), a antiga sede da Gestapo, uma exposição sobre o surgimento do Nazismo no Centro de Documentação de Munique, e uma visita a um monumento de um grupo de resistência ao nazismo: a Rosa Branca.
Em Berlim tivemos a oportunidade de conhecer o Memorial do Holocausto, uma grande intervenção no centro da cidade com mais de dois mil blocos de concreto em homenagem aos mais de seis milhões de judeus assinados. Outro lugar de memória foi a Topografia do Terror, sobre as instituições da SS e da polícia no “Terceiro Reich” que fica localizado ao lado das ruínas do antigo muro de Berlim. A visita também incluiu o Museu do Judaísmo, ao Memorial em homenagem aos ciganos Sinti e Roma, assim como a Galeria Olga Benário.
Além de visitar os memoriais, o Coletivo Aparecidos Políticos trocou ideias com a diretora e autora alemã Christiane Mudra, que há muitos anos trabalha com a história do nacional-socialismo e pesquisa as continuidades da extrema direita na Alemanha. Por exemplo, ela observou o julgamento da NSU por mais de 5 anos, no qual os assassinatos dos terroristas de direita do “National Socialist Underground” foram julgados. Além de publicações e formatos de áudio, a artista abordou o tema em uma trilogia de teatro em locais originais da cidade, que terminou com a produção multimídia “Kein Kläger: Die NS-Juristen und ihre Nachkriegskarrieren”. As discussões com ela nos permitiram entender melhor o confronto do país com os traços do nacional-socialismo, a fim de trazer alguns desses elementos para o nosso contexto sociocultural.
Ao longo das décadas, inúmeros memoriais e sinais de lembrança foram erguidos em espaços urbanos na Alemanha para homenagear as vítimas da ditadura nazista. Inúmeras publicações e filmes foram produzidos.
No entanto, Christiane Mudra enfatiza que até mesmo a “cultura da memória” alemã, que é vista internacionalmente como um modelo a ser seguido, foi controversa até pelo menos a década de 1980, e que a extensão da supressão dos crimes nazistas a partir do fim da guerra resultou em pontos cegos até hoje. Até mesmo a acusação dos criminosos foi sabotada com sucesso na maioria dos casos após os julgamentos de Nuremberg. Atualmente, o tema do nacional-socialismo é onipresente no trabalho educacional alemão. No entanto, a comemoração às vezes parece ritualizada.
Embora a situação específica de cada país deva ser vista de forma diferenciada, já há alguns anos é possível reconhecer um fortalecimento global dos movimentos fascistas, como não se via desde 1945, explica Mudra. Os resultados das últimas eleições estaduais na Alemanha também confirmam esse desenvolvimento. Tendo como pano de fundo a popularidade alarmantemente alta do partido de extrema direita “Alternativa para a Alemanha” entre os jovens eleitores, surge repetidamente a questão de como pode ser o ensino de história contemporâneo animado para transmitir as consequências centrais do nacional-socialismo. Não é à toa que o artigo 1º da Constituição alemã afirma: “A dignidade humana é inviolável”.
Qual seria outra relação do intercâmbio na Alemanha com o tema da ditadura brasileira? Em 2023, o governador do Ceará, Elmano de Freitas anunciou publicamente o fim do Mausoléu Castelo Branco, aquele que, ao que tudo indica por nossas pesquisas, era o maior mausoléu da América Latina em homenagem a um ditador. O agora antigo mausoléu foi uma criação do arquiteto Sérgio Bernardes (1919-2002), inaugurado em 1972, e situa-se no interior do Palácio da Abolição, compondo um acervo arquitetônico importante para o modernismo brasileiro. Nosso Coletivo realizou algumas intervenções urbanas neste local com intuito de questionar a memória dos violadores de direitos humanos. Aproveitando o momento histórico de mudança da referida homenagem, com o intercâmbio, trouxemos propostas a serem apresentadas ao outro museu ou memorial a ser instalado no espaço onde antes guardava o túmulo do Castelo Branco. Apresentaremos também um relatório que pretendemos entregar ao Governo do Ceará com algumas contribuições artísticas e museográficas advindas desse nosso projeto.
Por fim, o sobrevivente do nazismo Primo Levi, em um de seus testemunhos, escreveu uma frase com a qual desejamos terminar esse texto: “Para você e para seus filhos, as cinzas de Auschwitz servem como advertência: faça com que o fruto horrendo do ódio, cujo vestígios você vê aqui, não gere novas sementes, nem amanhã nem nunca”. Que a extrema direita não germine novas sementes.