Uma geração emergente de cientistas sociais e produtores culturais
Está se formando uma nova geração de jovens das periferias que usam seu tempo na escola secundária e na universidade para formar novas redes, criar espaços alternativos para produção intelectual e cultural e formar coletivos onde elaboram novas subjetividades
As periferias de São Paulo têm passado por processos de transformação intensa, sobretudo a partir dos anos 1990. Esses processos mudaram sua paisagem urbana e aspectos significativos da vida de seus moradores, e as transformaram em espaços muito mais heterogêneos do que foram no passado. A pesquisa “Periferias de São Paulo: heterogeneidade e novas formas de vida coletiva”,1 que coordenei em 2018, tanto estudou essas transformações como tentou fazer parte delas.
Provavelmente, uma das mudanças mais radicais acontecendo nas periferias de São Paulo hoje em dia seja a da configuração educacional das novas gerações. Os jovens que nasceram nas periferias nas últimas três décadas têm um nível educacional muito mais elevado do que o de seus pais, e muitos deles estão chegando à universidade. Embora um acesso equitativo à educação para jovens de diferentes classes sociais ainda esteja longe de ser realidade no Brasil e a qualidade do ensino público seja em geral baixa, é claro que houve mudanças significativas. A porcentagem de jovens dos dois quintis de renda mais baixa chegando ao ensino superior no Brasil subiu de 2% em 1995 para 12% em 2014.2 Num bairro da periferia leste de São Paulo, onde realizo pesquisas desde o final dos anos 1970, a porcentagem de jovens com educação secundária subiu de 0,77% em 1980 para 26% em 2013. A porcentagem daqueles que chegaram à universidade subiu de zero em 1980 para 5,73% em 2013.
A formação da equipe dessa pesquisa foi determinada pela decisão de que a maioria dos pesquisadores fosse das periferias e fizesse parte da primeira geração em suas famílias a concluir o curso superior. De fato, apenas um membro da equipe formada por Artur Santoro, Danielle Regina de Oliveira, Katia Ramalho Gomes, Luiz Paulo Ferreira Santiago, Mayara Amaral dos Santos e Renata Adriana de Sousa não tinha esse perfil. São cientistas sociais, comunicadores, educadores e produtores culturais oriundos das periferias.
A ampliação do acesso à universidade foi possível graças a uma série de programas adotados especialmente durante os governos federais do PT (Enem, ProUni, Sisu, Fies), expansão de universidades federais e adoção de políticas de ação afirmativa e cotas por várias universidades. Mas é claro que o aumento do acesso à educação formal não se traduz diretamente nem em integração social nem em mobilidade social. O que essa e outras pesquisas demonstram é que a questão da inclusão é muito mais complexa do que a do acesso e que a presença na universidade de jovens das periferias é muito desafiadora. Isso fica evidente no texto de Mayara Amaral dos Santos, que analisa vários dos desafios enfrentados por jovens das periferias não só para entrar na universidade, como também para permanecer em espaços que lhes são hostis.
De fato, as tensões e conflitos gerados pelas iniciativas de democratização e equalização do ensino são bastante conhecidos em vários contextos internacionais, como o processo de desmonte da segregação racial nas escolas e a adoção de cotas nas universidades nos Estados Unidos durante e após o movimento de direitos civis dos anos 1960; a abertura de todas as instituições de ensino na Índia, que desestruturou o sistema de acesso baseado em castas com a adoção de cotas ainda na década de 1930; e a luta pela descolonização do curriculum universitário na África do Sul pós-apartheid. Não há democratização de ensino sem conflitos e tensões. Mas o que o caso da Índia parece indicar é não apenas uma significativa expansão do acesso à educação a todas as camadas sociais após quase um século de cotas, mas também a diminuição dos conflitos intercastas nos espaços educacionais após a normatização da inclusão no decorrer dessas décadas de acesso amplo à educação.
Alguns dos efeitos da presença ampliada de jovens das periferias em espaços educacionais são sua politização, a organização em diversos tipos de coletivos e associações e seu engajamento em variadas formas de produção cultural. Está se formando uma nova geração de jovens das periferias que usam seu tempo na escola secundária e na universidade para formar novas redes, criar espaços alternativos para a produção intelectual e cultural e formar coletivos onde elaboram novas subjetividades. Esses jovens são protagonistas de novos grupos feministas, grupos de afrodescendentes, de LGBTQs. São produtores culturais dos mais variados gêneros, responsáveis pela criação de vibrante cena cultural por todas as periferias. A maioria deles opta por permanecer nas periferias, discute o que é ser um sujeito periférico e o que é produzir atividades culturais nesses espaços. Katia Ramalho Gomes aprofunda a análise desses aspectos. Artur Santoro analisa os trânsitos de LGBTQs entre a periferia e o centro e ressalta o caráter performático da identidade de gênero. Luiz Paulo Ferreira Santiago analisa o baile funk, concebido como um espaço de contradições e uma prática contra-hegemônica. Em outro texto que faz parte deste dossiê, Renata Adriana de Sousa analisa a crescente complexidade e diversificação no processo de autoconstrução. Ela mostra que o habitar nas periferias atualmente envolve transitar por diversas possibilidades de moradia, passando-se frequentemente pelas condições de inquilino, proprietário e ocupante de terra, sempre num estado de significativa incerteza.
Ouça o primeiro episódio da série especial do podcast Guilhotina que analisa as mudanças que ocorreram nas periferias de São Paulo nas últimas décadas. As entrevistadas são Kátia Ramalho Gomes e Teresa Caldeira. Ouça em seu player favorito ou clique na imagem
Outra dimensão da presença de jovens das periferias na universidade, nos coletivos e nessa pesquisa é a problematização da produção de conhecimento. Essa geração de intelectuais e acadêmicos das periferias tem o potencial de transformar os modos pelos quais se produz conhecimento sobre esses espaços, desequilibrando hierarquias há muito estabelecidas e abrindo novas perspectivas de crítica, análise e conceptualização. Esse processo emergente e em formação é sem dúvida tenso e está longe de estar totalmente delineado, mas, a meu ver, é um dos aspectos mais significativos dessa pesquisa.
Questões sobre o significado da produção de conhecimento sobre as periferias feitas por seus próprios moradores, indagações sobre a relação dessa produção com outras formas de conhecimento sobre as periferias e problematização da relação dos pesquisadores com a coordenadora do projeto foram constantes nas reuniões semanais de pesquisa. Questionamentos sobre a posicionalidade dos pesquisadores em relação, de um lado, a pessoas das periferias que se disponibilizaram a participar da pesquisa ou se recusaram a fazê-lo e, de outro, em relação à coordenadora foram recorrentes e nem sempre de fácil solução. Foi no contexto dessas discussões que decidimos conjuntamente que a pesquisa seria um espaço para os pesquisadores desenvolverem sua própria voz e autoria e que seus primeiros produtos seriam, de um lado, textos de autoria individual sobre os temas que estavam trabalhando e, de outro, podcasts para a divulgação dos resultados entre as redes de coletivos e moradores das periferias.
Teresa Caldeira é professora da Universidade da Califórnia em Berkeley.
Leia mais sobre a pesquisa e artigos de seus autores no especial “Periferias de São Paulo: cotidianos, conflitos e potências.
1 A pesquisa contou com o apoio da Fundação Tide Setubal e foi realizada durante minha filiação como pesquisadora visitante Fapesp junto à Fundação Getulio Vargas (Cepesp) e ao NEV-USP.
2 Elizabeth Balbachevsky, Helena Sampaio e Cibele Yahn de Andrade, “Expanding access to higher education and its (limited) consequences for social inclusion: the Brazilian Experience” [Expandindo o acesso ao ensino superior e suas (limitadas) consequências para a inclusão social: a experiência brasileira], Social Inclusion, v.7, n.1, p.7-17, 2019.