A crise da ordem internacional (neo)liberal
Crise do neoliberalismo tem levado à elevação de diversas crises a nível internacional
Nos últimos meses, dois eventos marcaram o contexto internacional: a expansão dos Brics e a escalada de tensões envolvendo Israel e Palestina. Apesar de diferentes em sua natureza, os dois fenômenos estão ligados por um único processo histórico que estamos testemunhando: a crise da ordem internacional – um evento que tem levado à elevação de diversas crises a nível internacional, principalmente a partir do que pode se considerar como uma crise hegemônica em um contexto de acirramento da disputa com outras grandes potências.
Formação da ordem internacional liberal
O que se denomina ordem internacional liberal foi criado na esteira dos eventos após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Seus ideais fundamentais são os princípios do multilateralismo – ou seja, da resolução conjunta de problemas internacionais e do aumento das trocas comerciais de bens e serviços, o que implica no aumento dos fluxos de capitais, seja na forma de investimentos diretos, seja como empréstimos financeiros. Além disso, essa nova ordem estaria alicerçada na criação de relações pacíficas entre as grandes potências. Por fim, a criação de regimes políticos democráticos liberais nos países capitalistas desenvolvidos foi outra base para a formação dessa nova ordem global.
A fim de assegurar o cumprimento desses princípios, foram criadas instituições multilaterais. Estas serviram para apoiar a construção de regimes liberais nos temas de paz e segurança, bem como na economia global. No primeiro caso, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU), um sistema de segurança coletiva [1], que reunia todos os Estados independentes considerados legítimos. Já no segundo, foram criadas três instituições que se seguiram à Conferência de Bretton Woods (1944): o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), depois chamado Banco Mundial. Além dessas instituições, o incentivo à integração regional como forma de contribuir para a reconstrução das economias europeias foi outro elemento significativo.
Entretanto, essa ordem internacional liberal só poderia ser criada a partir da atuação de uma potência hegemônica que, nesse caso, foram os Estados Unidos (EUA). Emergindo como a principal economia do sistema internacional e detendo grande capacidade exercício de poder, os EUA ocuparam a posição de hegemon, cumprindo o papel de incentivador do conjunto de relações internacionais próprias da ordem liberal criada. Tais incentivos tomaram a forma tanto do que alguns autores denominaram “bens públicos” – ou seja, um conjunto de elementos que beneficiavam dos Estados dos sistemas, particularmente os capitalistas avançados, como livre fluxo econômico, regime democrático liberal, estabilidade na relação entre as grandes potências, cooperação entre os países, dentre outros. Por outro lado, essa hegemonia era protegida por um “cinturão de ferro” da coerção, ou seja, da capacidade dos EUA de utilizar seu poder coercitivo contra os Estados que não correspondessem aos princípios dessa ordem internacional, sobretudo em termos de perturbação da segurança e do livre fluxo de bens e capitais (IKENBERRY, 1998).
Apesar da relativa longevidade da ordem internacional liberal, ela passou por um momento de crise durante a década de 1970, a partir das crises que viveram a potência hegemônica e seus aliados ocidentais: derrota na Guerra do Vietnã, choques de petróleo (1973 e 1979), estagflação e desnacionalização do setor produtivo – que passou a incrementar sua produção transnacional ao transferir indústrias para países do então chamado Terceiro Mundo. Além disso, a partir desse período, viu-se uma tendência cada vez menor dos EUA de prover os bens públicos referidos anteriormente, como demonstra o aumento do protecionismo estadunidense, a decretação do fim do padrão dólar-ouro (estabelecido em Bretton Woods). Essa crise foi acentuada nos anos 1980, com o fim do comprometimento norte-americano com uma economia liberal baseada no Estado de bem-estar e a adoração de princípios neoliberais na organização econômica e política das relações com sua sociedade (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).
Crise da ordem e seus efeitos
Em que pese a permanência de algumas de suas instituições básicas e de princípios que fundamentaram essa ordem internacional, seu conteúdo já havia passado por uma modificação significativa quando a Guerra Fria chegou ao fim. Desse modo, desde a década de 1990, o ordenamento global e a hegemonia que a embasa têm sido atrelados a três objetivos centrais: estabilização da periferia global, propagação do sistema político de democracia liberal e implementação da economia de mercado nas sociedades centrais e periféricas. O primeiro foi buscado através tanto de intervenções multilaterais, como as missões de paz da ONU e da OTAN e de organizações regionais, como a Organização dos Estados Americanos, a União Africana e a União Europeia, quanto por meio de intervenções unilaterais promovidas pela potência hegemônica, como as realizadas no Panamá, no Haiti, na Somália, no Afeganistão e no Iraque (SANAHUJA, 2012).
O segundo objetivo foi perseguido através da propagação da ideologia liberal em diversos fóruns e organizações internacionais e regionais, think tanks e instituições de planejamento político (CARROLL, 2013). Além disso, nesse período, foram realizadas intervenções políticas por instituições norte-americanas, como a USAID e a NED, a fim de apoiar os processos de democratização existentes em diversas partes da periferia. Porém, tais processos foram guiados de um modo geral pelo princípio da “democracia de baixa intensidade”, ou seja, uma democratização baseada em reformas institucionais limitadas, que não atendesse as demandas mais radicais da sociedade civil, nem aumentasse em grande medida a capacidade de influência da população sobre os processos de tomada de decisão no Estado (BARBOSA, 2019).
Por fim, a construção de economias de mercado ocorreu, por um lado, mediante a criação de uma agenda coordenada entre as elites políticas, econômicas e intelectuais do Ocidente, conforme manifestado no Consenso de Washington de 1989. Por outro, foram criados mecanismos para implementação de reformas neoliberais, dentre os quais se destacaram os programas de reforma estrutural propostos pelo FMI nas décadas de 1980 e 1990 – ou seja, medidas pressionadas pela instituição a fim de negociar a dívida de países periféricos. Entre elas, era exigido diminuição nos gastos públicos, privatizações de empresas nacionais e flexibilização de legislações trabalhistas.
Apesar de essas alterações da ordem internacional liberal terem sido consideradas um êxito pela potência hegemônica e pelos tomadores de decisão nos países desenvolvidos e em parcela da periferia global, elas acabaram por aumentar sua capacidade de geração de instabilidade no sistema internacional como um todo. Em primeiro lugar, as intervenções militares promovidas pela ONU e por organizações regionais não levaram a uma estabilidade de longo prazo dos países periféricos, como demonstram os casos da República Democrática do Congo, do Haiti e da Somália. Por sua vez, as intervenções de membros da OTAN no Leste Europeu e no Oriente Médio levou a tensões com outras potências, como a Rússia e o Irã, sem levaram a uma estabilidade a países como Iraque, Afeganistão e Líbia.
Na dimensão da defesa do regime democrático liberal, a limitação das demandas populares nas décadas de 1980 e 1990 levou, por um lado, à continuidade da desigualdade socioeconômica em diversos países da periferia e semi-periferia global. Por outro, a falta de mecanismos sociais compensatórios para as reformas neoliberais nas sociedades desenvolvidas precipitou a atual crise democrática vivida pelos países europeus e dos EUA, marcados pela ascensão da extrema-direita e, no caso da União Europeia, pelo “euroceticismo”. Por fim, economicamente, a criação de economias de mercado não levou a um aumento do crescimento econômico, nem à redução da desigualdade conforme esperado, tendo alimentado a instabilidade nos fluxos financeiros internacionais, conforme atestado pela crise da bolha especulativa da internet (1994), pela crise financeira asiática (1997) e pela crise do subprime (2008) – o que acabou levando a discussões sobre o fim do Consenso de Washington.
Por fim, cabe comentar que a crise da ordem internacional liberal parece estar atrelada à própria crise da hegemonia norte-americana. Essa crise pode ser vista tanto pela incapacidade ou falta de vontade dos tomadores de decisão de Washington de continuarem a prover bens públicos globais, como incentivos à utilização de mecanismos multilaterais de governança global – o que ficou demonstrado recentemente na preferência norte-americana por tratar a crise envolvendo Israel e Palestina diretamente, ao invés de através do Conselho de Segurança da ONU. Entretanto, essa crise também pode ser percebida a partir do aumento das disputas com Rússia e China, tanto do ponto de vista econômico, quanto do militar – levando, inclusive, a uma intensificação da aliança entre essas duas grandes potências, especialmente a partir de 2014, com a crise da Crimeia (SCHUTTE; DEBONE, 2020).
Portanto, o que se verifica atualmente, é uma tendência de a atual ordem internacional liberal gerar mais crises do que instabilidades. As modificações por que passou nas décadas de 1980 e 1990, bem como a propensão da potência hegemônica de ampliar sua capacidade de ação sem gerar os bens públicos globais que haviam sido um dos fundamentos desse ordenamento internacional no século passado têm levado uma ineficiência cada vez maior dos modelos econômico e políticos propostos por essa mesma ordem.
Por sua vez, esse momento de crise coloca cada vez mais constrangimentos para a política externa brasileira, ao inviabilizar uma inserção internacional autônoma. Isso porque, em um momento de crise internacional, uma disputa entre as grandes potências aprofunda a necessidade de o país se vincular a um dos lados do conflito. Isso foi visto na recusa de mediação brasileira no caso da Guerra da Ucrânia, a partir da rejeição da criação de um Clube de Paz que apoiaria os esforços de estabilização das relações entre Rússia e Ucrânia; também foi percebido pelo veto norte-americano à proposta de resolução brasileira no Conselho de Segurança da ONU, em contraposição a Rússia e China. Além disso, o governo brasileiro também recebeu críticas devido aos diálogos travados com a administração russa e às críticas brasileiras à atuação do Ocidente na guerra. Assim, a capacidade de atuação sistêmica do Brasil também tem sofrido com as instabilidades que marcam a crise da ordem internacional neoliberal.
João Estevam dos Santos Filho é Professor de Relações Internacionais na Universidade Anhembi Morumbi. Doutorando pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisador pelo Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO). E-mail: [email protected].
Referências bibliográficas
BARBOSA, Letícia. A assistência externa de promoção da democracia liberal dos Estados Unidos na América Latina: uma observação desde a Análise das Redes Sociais (ARS). Revista Carta Internacional, v. 14, n. 3, p. 84–109, 2019.
BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
CARROLL, William K. The Making of a Transnational Capitalist Class. [s.l.]: Zed Books, 2013.
IKENBERRY, G. John. Institutions, Strategic Restraint, and the Persistence of American Postwar Order. International Security, v. 23, n. 3, 1998.
SANAHUJA, José Antonio. El nexo seguridad-desarrollo: entre la construcción de la paz y la securitización de la ayuda. In: Construcción de la paz, seguridad y desarrollo. Visiones, políticas y actores. Madrid: UCM, 2012, p. 17–70.
SCHUTTE, Giorgio; SANT’ANNA DEBONE, Victor. Parceria China e Rússia. Carta Internacional, v. 15, n. 2, 2020.
[1] Sistema de segurança coletiva é um regime ou organização internacional destinado a proteger a segurança de todos os seus membros ao declarar que o ataque a um deles deve ser respondido pelos demais.