Enfim, a classe trabalhadora chegou ao paraíso?
Parece claro que foram as plataformas digitais de trabalho que chegaram ao paraíso, ao terem a liberdade de impor suas regras e se colocarem (falsamente) como simples mediadoras entre consumidores e fornecedores de serviço.
A palavra empreendedorismo vem ganhando espaço, desde a crise econômica de 2008, com ênfase em algumas de suas dimensões, supostamente positivas para o trabalhador: a não existência de chefes definindo o quê e como fazer; e a liberdade para decidir quando e onde fazer. Por outro lado, aspectos como insegurança, risco, ausência de direitos, isolamento nunca são mencionados. Esta discussão não é nova. Já nos anos 1990, a palavra “empregabilidade” – significando que cada trabalhador seria o único responsável pelo seu emprego e desemprego-, foi muito evidenciada, também num contexto de desemprego e queda da renda.
Nesse mesmo período, em meio a implantação do modelo toyotista de organização do trabalho e da produção, termos como participação, colaborador (ao invés de trabalhador), e autonomia, passam a colonizar o cotidiano laboral1. Além de intenso processo de flexibilização da remuneração, das formas de contratação e do tempo de trabalho que, na pregação do capital, significariam liberdade e autonomia para todos, mesmo que, na prática, elas fossem adotadas unicamente em função dos seus interesses.
Outro movimento realizado pelas empresas refere-se à crescente externalização e terceirização de suas atividades. Embora o discurso patronal seja o da sua inevitabilidade e de ganhos de eficiência e produtividade decorrentes da especialização, pesquisas mostraram uma realidade de empresas contratadas sem lastro para atuarem, de subordinação dos trabalhadores e de piora de suas condições de trabalho e de representação sindical2.
Indústria 4.0
Em paralelo, teve sequência o processo de inovação, passando pelas tecnologias de informação e comunicação e pela “Indústria 4.0”. Uma transformação que já abrange diversas interações sociais, sejam elas de amizade, de compra ou de trabalho. Para Castells (2013), vivemos uma dupla mudança, com a reestruturação global e profunda do capitalismo e o nascimento da sociedade informacional. Sociedade na qual a criação, o tratamento e a transmissão de informação são as principais fontes de poder e onde as redes passam a organizar grande parte da economia, a partir das plataformas digitais.
Há diferentes tipos de plataformas: as da “primeira onda” possibilitaram ao usuário a compra direta com a empresa ou a troca de serviços entre usuários (share economy). Já a segunda geração (gig economy), que nasce nos anos 1990 em meio à generalização da internet e dos smartphones, é composta por empresas muito parecidas com as tradicionais, tendo como objetivo precípuo a maximização do lucro. Acontece que muitas destas plataformas, buscando enganar a sociedade, se autodenominam de compartilhamento e colaboração3.
Mas o que essa discussão tem a ver com a possibilidade de a classe trabalhadora ter encontrado, ou não, o paraíso 4? O fato é que o trabalho mediado por plataformas digitais tem sido propalado como o ápice da liberdade e do ganho fácil para o trabalhador: “Torne-se um entregador parceiro da Deliveroo e consiga uma renda rápida e significativa com um tempo flexível!”. “Dirija com a Uber: sem horários, sem patrão, sem limites!”.
Como essas plataformas conseguiram crescer tanto e em tão pouco tempo? Pensemos o caso do Brasil, em sua situação de crise econômica, pós reforma trabalhista de 2017, com altas taxas de desemprego e de trabalho informal. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 3,6 milhões de brasileiros estavam trabalhando, em 2018, como motoristas de aplicativos, taxistas ou cobradores de ônibus, aumento de 29,2% em relação a 2017! O total de pessoas trabalhando em local designado pelo empregador, patrão ou freguês – grupo que inclui os entregadores em geral – também registrou a maior alta, desde 2012. Eram 10,1 milhões de trabalhadores em 2018.
Cenário negativo para classe trabalhadora
Ocorre que as plataformas digitais se aproveitaram de uma conjunção de fatores, em sua maioria negativos para a classe trabalhadora. Primeiramente, a própria disponibilidade de tecnologia, que possibilita, para além das facilidades de consumo, o controle do trabalho e dos trabalhadores à distância. Além disso, as opções políticas neoliberais, que desvalorizam a legislação e a negociação coletiva, vêm sendo disseminadas desde os anos 1990. Por sua vez, tais opções políticas, inaptas a responder de forma adequada às crises econômicas, têm contribuído para o crescimento do desemprego e a precarização do trabalho. Pior, elas têm resultado no aprofundamento e criação de novas formas precárias de emprego, por meio de reformas trabalhistas.
Isso tudo num cenário de globalização e abundância de capital de risco, advindo do processo de financeirização da economia, afastado da lógica dos investimentos de longo prazo, e que passa a ser direcionado para as plataformas. Como resultado, num ambiente tão desfavorável aos trabalhadores e à regulação pública, o discurso propositivo das vantagens do empreendedorismo, da empregabilidade e da meritocracia ganha força, juntamente com aquele que iguala flexibilidade a autonomia e liberdade.
Parece claro, desta forma, que foram as plataformas digitais de trabalho que chegaram ao paraíso, ao terem a liberdade de impor suas regras e se colocarem (falsamente) como simples mediadoras entre consumidores e fornecedores de serviço. Para elas, não há relação de trabalho, obrigações trabalhistas e nem, tampouco, direitos dos trabalhadores. Além disso, elas não garantem direitos aos consumidores e criam uma infinidade de artimanhas jurídicas para fugirem de impostos.
Como dizer que não há uma relação laboral que mereça a proteção do Direito do Trabalho, quando são as plataformas que definem se um trabalhador pode oferecer seu trabalho e o coloca para fora quando desejam? E ainda estabelecem a forma como o labor deve ser feito, os prêmios, o contato inicial com o cliente e o valor da remuneração – podendo, inclusive, reduzi-la?
Por outro lado, para os trabalhadores restou o inferno, dado que eles devem assumir todos os riscos: dos seus instrumentos de trabalho à manutenção da sua saúde. Entretanto, é exatamente a vivência desse trabalho intenso, pressionado, precário e incerto – que nada tem a ver com a liberdade e o ganho fácil propalados – que tem levado os trabalhadores progressivamente a se mobilizarem e a reivindicarem melhores condições laborais.
Ao mesmo tempo, as jurisdições em diversos países também se manifestam com cada vez mais frequência e as ações que vêm sendo julgadas descortinam o sistema de gestão e controle desses trabalhadores, bem como a realidade de desproteção por eles vivenciada. Revelam, mais ainda, uma atuação estratégica das empresas para afastar o Direito do Trabalho e todas as discussões sobre justiça social, que se contrapõem à relação de total desequilíbrio que as plataformas buscam impor. É o que vemos no crescente número de ações judiciais no Brasil e fora do país, envolvendo plataformas como Uber, Loggi, Ifood e Rappido.
Ana Claudia Moreira Cardoso é docente no Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Doutorado em co-tutela entre a USP e Universidade de Paris 8. Realizou pesquisas de pós-doutorado na UnB e no Centre de Recherche Sociologique et Politique de Paris. Trabalhou no DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) e na Faculdade do DIEESE de Ciências do Trabalho. Karen Artur é docente da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Doutora em Ciência Política pela UFSCar, com doutorado sanduíche na Northwestern University. Realizou pesquisas de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, IFCS, UFRJ e no Centro de Estudos em Direito e Desigualdades da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto, além de PNPD/CAPES na UFSCar, onde lecionou na graduação e na pós-graduação.
1 No caso dos países desenvolvidos, tal movimento já se inicia no final dos anos 1970, num contexto de crise econômica e queda da demanda por serviços e mercadorias e, por outro lado, de forte demanda por parte dos trabalhadores por participação e autonomia.
2 No Brasil, podemos citar como referência Druck, G.. A indissociabilidade entre precarização social do trabalho e terceirização. In Teixeira, Marilane Oliveira; Andrade, Helio Rodrigues de; Coelho, Elaine D´Ávila (orgs). Precarização e Terceirização: faces da mesma realidade. São Paulo: Sindicato dos Químicos, 2016, p. 17-32. Para um olhar comparativo latinoamericano, Morales, D.; B. Victoria (coords). La terceirización laboral: orígenes, impacto y claves para su análisis en America Latina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2014.
3 Por sua vez, na “gig economy” há plataformas de microtrabalho (crowdworkers), que oferecem serviços imateriais de baixa qualificação, fragmentados, imprevisíveis e mal remunerados e, também, as de “trabalho digital por demanda” que oferecem serviços imateriais especializados (tradução, serviço jurídico e contabilidade) e materiais (transporte, entrega, cuidado, conserto, cozinha a domicílio, entre outros).
4 Referência ao filme italiano “A classe operária vai ao paraíso”, de 1971, dirigido por Élio Petri, discutindo os ideais de liberdade e autonomia, em meio às indagações sobre o futuro da classe trabalhadora naquele momento histórico.