Enquanto isso, na Sala de Justiça… Pautas antigas voltam a rondar o Judiciário que agora é pop
O Brasil escancarou de tal forma seu sistema político e jurídico, que é justo nesse entremeio que estamos. Para os temas tratados nessa coluna, uma questão torna-se ainda mais intrigante: como ficará a imagem do Sistema de Justiça depois de todo o expurgo dos últimos anos?
Finalmente, 2023 começou. Há uma ironia que se apresenta nessa frase: qual será “o normal” de um ano que começou com a invasão das sedes dos três Poderes da República? O Brasil escancarou de tal forma seu sistema político e jurídico, que é justo nesse entremeio que estamos. Para os temas tratados nessa coluna, uma questão torna-se ainda mais intrigante: como ficará a imagem do Sistema de Justiça depois de todo o expurgo dos últimos anos?
Tentando responder a essa pergunta, pedi a alguns amigos que me enviassem memes com juízes, promotores e outros personagens do mundo jurídico. A busca era exatamente essa: os personagens, em especial aqueles revelados nas fantasias de carnaval. Nada mais indicativo de que algo ganhou popularidade do que o imaginário das ruas e, embora por aqui já tivéssemos avisado do perigo da invasão do Capitólio em uma versão Terra Brasilis, o episódio do dia 8 de janeiro foi realmente assombroso.
De todos os mil memes que recebi, um achei o mais emblemático. O biscoito (ou bolacha) Xandão. Uma espécie de imagem singela de como o “ilustre desconhecido” se tornou rotineiro e popular. Os memes com as ilustrações “vigiar e punir, gostoso demais”, em uma estética que lembra os famosos biscoitos de polvilho Globo ou a ilustração oldschool “Amar é…” são a representação perfeita da transformação.
Chamo a atenção para as variações em que o bonequinho de “Vigiar e punir” aparece ao lado do Zé Gotinha, fazendo uma referência a aqueles que, presos após o episódio do 8 de janeiro, tiveram finalmente que se vacinar contra a Covid. A criatividade não tem limites e a super exposição do Sistema de Justiça já não é novidade.
Mas se tomamos como certo esse novo cenário, sendo tal visibilidade um tipo de “variável independente”, vale pensar nos seus efeitos em um cenário pós-bolsonaro. Um breve acompanhamento dos jornais mostra ter voltado ao debate público questões que estavam presentes antes da explosão da Lava Jato e que dizem respeito à estrutura do Poder Judiciário, seus custos e sua fiscalização. Recentemente o Estadão publicou uma reportagem com o seguinte título: “Empresas com causas de 158 bilhões patrocinam eventos para magistrados” . A essa matéria se soma a retomada do debate sobre mandatos para os ministros do Supremo.
Podemos elencar diversas pautas, mas o fato é que todas elas já rondaram o que, nos anos 2000, se chamou de Reforma do Judiciário e que acabou culminando com a aprovação da Emenda Constitucional n° 45. Foi pela Reforma, por exemplo, que se criou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) atendendo, ainda que de forma interna, ao que na época era denominado de “controle externo”. Vale ressaltar que, em 2004, diversos termos associados ao assunto se destacaram na cobertura midiática[1] e sua presença na agenda pública foi fundamental para a aprovação de um órgão que se propusesse a controlar (mesmo que endogenamente) Judiciário e Ministério Público.
Acorre que esse debate sobre controle institucional não arrefeceu propriamente, mas foi atropelado pela ascensão da Lava Jato e pelo governo Bolsonaro. Com isso, as questões sobre accountability institucional e um controle, digamos, regular, foi tomado pela ideia de juiz herói, pelo combate à corrupção, pela criminalização da política pela Justiça… Um estouro que nos coloca em uma nova realidade.
Então, resta a pergunta: agora que memes, bonecos e personagens já são comuns no imaginário sobre a Justiça, como algo tão pop (e com uma imensa demanda por representatividade) vai responder às cobranças do passado? Um palpite-spoiler tão óbvio como incômodo: não vai ser possível mais se esconder sob o manto da distância, do “ilustre desconhecido”.
É irônico que nesse revival tenha sido Sérgio Moro, na sua versão candidato, um dos primeiros a retomar o tema. Mais curioso é mapear o incômodo que a ideia trouxe no próprio meio jurídico. O ex-juiz herói falando sobre reformar a justiça é uma síntese perfeita do dilema. É uma espécie de Liga da Justiça no Mundo Bizarro. Os cringe entenderão melhor a referência, mas o paradoxo pode muito bem ser traduzido no atualíssimo jargão: “Vigiar e punir, gostoso demais”. Popularidade e legitimidade são coisas distintas.
Grazielle Albuquerque é jornalista e cientista política, foi visiting doctoral research no German Institute of Global and Area Studies (Giga). Seu trabalho se volta para a relação entre política, justiça e mídia.
[1] Ver mais em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/18740