Além da Faixa de Gaza: comunicação como arma no enfrentamento aos genocídios
Na Palestina e no Brasil, mídias comunitárias e ativistas denunciam o racismo por trás das matanças. Acompanhe no novo artigo do especial “Algo de novo sob o sol? Direito à Comunicação no primeiro ano do atual governo Lula”
Numa manhã, uma mensagem chega: amigo, a coisa aqui tá feia, os fazendeiros estão atacando, por favor, mobiliza a sua rede para divulgar. Em poucas horas, o assassinato de Nega Pataxó, no sul da Bahia, já repercutia nacionalmente. A tentativa de dar visibilidade aos atentados como forma de proteção sugere o papel estratégico da comunicação, no qual reside uma esperança de que as histórias possam ser contadas e, em casos de emergência, ajudem a ecoar o grito por socorro.
De acordo com o Atlas da Violência (2023), cerca de 616 mil pessoas foram assassinadas entre 2011 e 2021 no Brasil. Ao menos 77% das vítimas eram negras. Apesar dos dados e de uma realidade evidente, o termo “genocídio” nunca foi utilizado pela mídia hegemônica para descrever o que ocorre no país com a população afrodescendente.
Em 2023, durante o primeiro ano do governo Lula (PT), 363 yanomamis morreram, sobretudo em decorrência das precárias condições a que estavam submetidos em seus territórios, alvo de garimpeiros e madeireiros. Durante o período governado por Jair Bolsonaro (PL), cerca de 800 indígenas foram assassinados no país. Se em 1500 os povos originários ocupavam todo o território do que hoje é chamado de Brasil, atualmente representam menos de 1% da população nacional.
Em outra face da violência, no Oriente Médio, após ataques do Hamas, em novembro de 2023, que vitimou cerca de 1.200 israelenses, mais de 30 mil palestinos foram mortos por forças de Israel, até o final de fevereiro de 2024. Contudo, nos principais meios de comunicação brasileiros não há alusão ao genocídio palestino em curso desde 1948.
A Palestina luta pra sobreviver
Em 2017, a comunicadora comunitária Gizele Martins conheceu a Palestina, a partir de convite feito por organizações locais. Cria da favela da Maré, no Rio de Janeiro, a jornalista tem trajetória no combate à militarização, o que chamou a atenção dos movimentos palestinos que identificaram semelhanças entre o que ocorre nas comunidades brasileiras e no território árabe.
Após visita à Palestina, que se repetiria em 2023, Gizele afirma que esteve diante do maior laboratório de uma política da morte. “Eles nos mostram que as armas que matam na Palestina são as mesmas que matam nas favelas cariocas, no México, Colômbia, Índia e em todo o Sul global. São as mesmas armas, tecnologias, treinamento, drones. São os mesmos poderes, usando recursos públicos para comprar armamento para controlar e separar racialmente povos”, denuncia a jornalista. Contudo, tal fenômeno não é reportado pelas mídias comerciais do Brasil.
Estudos destacam a parcialidade da cobertura brasileira pró-Israel e a sonegação de informações de origem palestina. O texto “A contribuição da mídia para o ciclo de violência” traz exemplos, como o uso de fontes majoritariamente israelenses nas matérias. Os veículos brasileiros também produzem uma cobertura enviesada ao invisibilizar o debate sobre o “apartheid” existente em Gaza, ao ignorar o contexto histórico do conflito e ao encobrir os crimes cometidos por Israel.
Também pesa a própria viabilidade do trabalho jornalístico. Se em Israel os profissionais estão vivos e contam com estrutura para produção e distribuição de conteúdos, do lado palestino muitos já foram mortos ou seguem lutando para sobreviver. Gizele Martins pontua que “enquanto comunicadora que sempre sofreu com assédios e ameaças por falar sobre segurança pública e denunciar a militarização no meu território, ainda estamos um pouco à frente, em termos de segurança digital e física, do que os jornalistas que estão na Palestina”.
No final de 2023, cerca de noventa comunicadores/as perderam suas vidas por conta dos ataques israelenses, de acordo com o Committee to Project Journalists. “Eu conheço um jornalista em Gaza que sobreviveu a um bombardeio, mas perdeu seis pessoas da família. Outros que eu conhecia foram assassinados. Uma outra comunicadora está presa”, afirma Gizele. Portanto, a violência contra jornalistas que fazem a cobertura no território palestino torna ainda mais desleal a “guerra de informações”.
A jornalista também chama a atenção para o caráter racial dessa “máquina de matar e controlar povos”, ressaltando que até nas “mídias de esquerda” o debate racial tem sido ignorado – o que reforça a importância de uma comunicação feita a partir dos territórios. Para acompanhar o que vem ocorrendo na Palestina, Gizele indica a cobertura do BDS Movement, da organização Stop the Wall, da Sanaúd (Juventude Palestina) e da Fepal (Federação Árabe Palestina do Brasil), além da agência de notícias Al Jazeera.
Desde o início por ouro e prata
Além das mídias comunitárias, também destaca-se na produção de informação contra-hegemônica o que a jornalista Alane Reis classifica como “mídias ativistas”, a exemplo da Revista Afirmativa, mídia negra surgida na Bahia em 2014. A jornalista, que é coordenadora da Afirmativa, considera que nos últimos anos houve um aumento do alcance desses veículos junto à sociedade. De acordo com ela, as mídias ativistas têm um papel fundamental no processo de sensibilização, informação e educação da sociedade sobre o genocídio das populações negras e indígenas, contrapondo as mídias comerciais “que sempre legitimaram o genocídio”.
Para Alane, essa relação é intrínseca. “A imprensa que surgiu no Brasil negava o racismo, relativizava a escravidão e hierarquizava as pessoas da sociedade”, afirma a jornalista, que avalia que marcos recentes obrigaram os grupos midiáticos a passarem a reconhecer o racismo, mas, ainda assim, negando o genocídio. Segundo a coordenadora da Afirmativa, “é mais palatável falar em racismo estrutural do que reconhecer os racistas e a política de morte contra a população negra”. Alane pontua também que somente a sensibilização nunca foi suficiente para impedir a matança, o que exige ações diretas de incidência política.
Nesse sentido, a Ponte Jornalismo tem produzido reportagens que denunciam a prisão de inocentes e conseguido incidir no sistema de justiça. Em 2023, a organização comemorou a decisão judicial que condenou o Estado de São Paulo a indenizar Flavio Santos por mantê-lo preso por mais de dois anos, sob acusação de roubo. A partir da reportagem da Ponte, que expôs diversas falhas do processo, uma advogada se sensibilizou e assumiu a defesa de Flavio, conseguindo sua soltura dois meses depois.
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Em 2023, a Ponte também se destacou pela cobertura da “Chacina do Guarujá”, a exemplo da reportagem que contou a história de Willians Santana, uma das 28 vítimas da Operação Escudo, deflagrada pela Polícia Militar de São Paulo e que levou terror às comunidades da Baixada Santista. Quem também produziu uma série de reportagens sobre a operação foi a agência de notícias Alma Preta, analisando a política de segurança do governador Tarcísio de Freitas e conversando com moradores das localidades ameaçadas pela polícia.
Em Salvador, outro caso foi acompanhado pela Afirmativa, que um ano após a “Chacina da Gamboa” denunciou a blindagem dos policiais responsáveis pelas mortes dos jovens negros Alexandre dos Santos, Cleverson Cruz e Patrick Sapucaia. No mês seguinte à reportagem, o Ministério Público autorizou a busca e apreensão na casa dos policiais investigados e, no final de 2023, apresentou denúncia contra eles.
Alane Reis destaca que a abordagem midiática sobre o genocídio da população negra não pode ser restrita à violência policial. “O genocídio é sistêmico. Uma perspectiva pouco debatida é a da justiça reprodutiva: violência no parto, mortalidade infantil, controle do corpo das mulheres, proibição do aborto. A complexidade desse problema não é tratada pelas mídias hegemônicas, nem pelas mídias ativistas”, afirma a jornalista. Em 2023, o Intervozes publicou a pesquisa “O corpo é nosso: a cobertura da mídia tradicional e religiosa sobre direitos sexuais e reprodutivos”, com dados que podem subsidiar o debate sobre o genocídio da população negra a partir da perspectiva da justiça reprodutiva.
Virá que eu vi
A relação da mídia hegemônica com a população indígena também é marcada pela negação do racismo e do genocídio em curso. Sem surpresa, os veículos comerciais têm estreita relação com os responsáveis pela matança, como mostra o alinhamento ao agronegócio, que muitas vezes fomenta a invasão de terras e o desmatamento que abre caminho para madeireiros, garimpeiros e traficantes. Reportagens da Agência Pública sobre o Vale do Javari, um ano após a execução de Bruno e Dom, revelam a complexidade das disputas na região.
Diversos estudos abordam o plano estratégico que o agronegócio tem para a comunicação e o quanto é investido na mídia comercial, a exemplo do artigo “Agronegócio e mídia brasileira: onde duas monoculturas se conectam”. O financiamento (ou controle direto) de mídias comerciais por empresários do agronegócio vem construindo uma narrativa de que “o agro é pop” e desassociando-o dos crimes ambientais e dos assassinatos de indígenas, trabalhadores rurais, quilombolas e ribeirinhos. Isso também pode ser constatado no estudo “Vozes Silenciadas – quem quer calar a luta dos sem-terra?”, que monitorou a cobertura midiática durante a “CPI do MST”. O monitoramento foi realizado pelo Intervozes e publicado em parceria com o Brasil de Fato. Pesquisas também apontam a relação das big techs e até de Elon Musk, proprietário do X (ex-Twitter), com o garimpo ilegal e a violência contra povos indígenas.
Diante desse contexto, a comunicação comunitária tem o desafio de enfrentar a desinformação e pautar narrativas omitidas pelos veículos tradicionais e restringidas pelas plataformas digitais, como pontua Henrique Ferreira, membro do coletivo Jovem Tapajônico. “A comunicação comunitária também atua como meio de proteção aos nossos defensores, sem o ‘rabo preso’ que por muitas vezes os meios de comunicação convencionais têm com figuras políticas e influentes na sociedade”, ressalta o comunicador paraense. No campo radiofônico, 2023 foi um ano especial para a Rede Wayuri, que inaugurou a sua web rádio. A rede é composta por comunicadores/as de oito etnias da região do Rio Negro.
Com grande visibilidade nas redes sociais, a Mídia Indígena também tem se destacado na promoção de narrativas dos povos indígenas, além da mobilização em torno de pautas como o julgamento do Marco Temporal. Jovens também têm utilizado as redes sociais como “influenciadores”, como é o caso de Daldeia, que em 2023 se destacou ao se aproximar de 3 milhões de seguidores no TikTok – em sua página ele aborda o cotidiano em sua aldeia. Geni Nuñez, Tukumã Pataxó e Txai Suruí também são comunicadoras/es com grande alcance nas redes e que abordam a identidade dos seus povos e suas reivindicações.
Nós por nós
Após a gestão de Bolsonaro, o novo governo eleito em 2022 trouxe esperanças. “Sem dúvida o desgoverno que enfrentamos por quatro anos foi um rasgo no que diz respeito à segurança das pessoas que se opunham a quem estava no poder. Esse rasgo não é uma ferida que se cura rapidamente com a troca de medicação”, destaca Henrique Ferreira. Mesmo ciente dos desafios no primeiro ano do governo Lula, os movimentos sociais não têm ignorado o pouco espaço na agenda governista. No final de 2023, a Articulação pela Mídia Negra questionou a ausência de jornalistas negros e negras nas reuniões com profissionais de imprensa no governo.
Entidades, como a Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (Abraço), também têm cobrado a revisão do decreto 2.615/1998 e a aprovação de uma legislação que contribua com a sobrevivência das rádios, como o projeto de lei 5.706/2019, que permite a captação de recursos publicitários.
Movimentos também questionam o presidente Lula sobre sua política de comunicação, que não reflete o discurso antirracista usado durante a campanha eleitoral. A ausência de políticas públicas para o fomento de mídias não hegemônicas ratifica a falta de prioridade que a comunicação tem para o governo. Assim, o “nós por nós” é o que segue garantindo o trabalho de comunicadores e comunicadoras na linha de frente contra os genocídios étnicos.
Alex Pegna Hercog é baiano, comunicador popular graduado em Relações Públicas e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.