Ricardo Nunes e os esquisitos
A base da extrema direita está rachando, e aparecem outros elementos importantes a serem levados em conta nessa eleição: os que se rendem ao extremismo, sem abandonar as aparências da moderação
Agora, depois da cadeirada de José Luiz Datena (PSDB) em Pablo Marçal (PRTB) no debate entre os candidatos à prefeitura de São Paulo na TV Cultura, o debate promovido pelo Flow podcast terminou em pancadaria, literalmente.
A eleição em São Paulo certamente chama a atenção para o fato de que o grau de intolerância e violência atinge seu ápice desde a redemocratização. Ao mesmo tempo, a maioria dos eleitores também parece estar entendendo o risco que Marçal representa para a cidade mais importante da América do Sul, com um condenado na justiça por fraude e formação de quadrilha podendo sentar-se na cadeira de prefeito.
Isso sem considerar os indícios contundentes da ligação do seu partido com o PCC, além da ausência de respostas reais para enfrentar problemas complexos. Tudo isso se torna evidente em seu vômito de xingamentos e ressentimentos numa linguagem marginal. Não à toa, Marçal prega o 6 de outubro como o “dia da vingança”.
Nos principais tratados contemporâneos da Ciência Política, Marçal será classificado como um outsider que irrompeu em um mar de desilusões que inunda a nossa democracia, sempre mais ameaçada.
Marçal é, sobretudo, o produto do momento em que estamos vivendo. O discurso antissistema ao qual apela também apavorou o bolsonarismo, desvendando que Jair Bolsonaro é uma fraude substituível. A base da extrema direita está rachando, e aparecem outros elementos importantes a serem levados em conta nessa eleição: os que se rendem ao extremismo, sem abandonar as aparências da moderação.

A disputa da extrema direita em São Paulo.
Créditos: Reprodução/Band
A escola da barbárie
Ricardo Nunes (MDB) é um prefeito muito ruim para não precisar de alucinados que atentam contra a democracia para conquistar a sua reeleição. O prefeito de São Paulo, ciente disso, procurou Jair Bolsonaro para apoiá-lo. Jair indicou o coronel da Rota, Ricardo Mello Araújo (PL), para a posição de vice na chapa, sacramentando a aliança.
Como disse o sociólogo Celso Rocha de Barros, um defensor de Nunes poderia dizer que até aí tudo bem. Bolsonaro ainda não está preso e, então, ele tem o direito amparado na Constituição para participar da vida política. A aliança seria natural porque Nunes é um candidato de direita e Bolsonaro é uma liderança de massas. Contudo, se Nunes fosse um prefeito competente e popular, poderia atrair eleitores da direita sem fazer concessões ao golpismo. Mas Nunes está longe disso, assim como está a uma distância oceânica do centro democrático.
As pesquisas indicam que Marçal pode ter chegado ao seu teto de crescimento, enquanto a sua rejeição cresce consistentemente. A poderosa máquina da administração municipal, o terceiro orçamento do Brasil, passou a favorecer Nunes, que não deve seu crescimento a Bolsonaro. Nunes cresceu apesar do entusiasmo bolsonarista por Pablo Marçal.
Além disso, a postura de Marçal como um sujeito que não se senta à mesa para comer com garfo e faca, passou a oferecer para Nunes uma credencial de moderado. Em outras palavras: já na cadeira de prefeito e domesticado à política tradicional, Nunes passou a ser visto como uma opção de voto útil contra a má-fé de Marçal. Assim, o coach serve de escudo ao obscuro Ricardo Nunes, que passou a não precisar se explicar sobre a sua gestão incompetente e duvidosa.
Se Nunes fosse um democrata, com a virada da tendência que indicaram as pesquisas, seria a hora dele se distanciar dos golpistas, certo? Afastá-los do segundo turno em São Paulo seria o triunfo da democracia. Ele fez todo o oposto.
Mesmo quando ele descobriu que não precisaria de Bolsonaro para conquistar sua reeleição, deu uma entrevista ao fora da lei Paulo Figueiredo, que participou ativamente da tentativa de golpe de Estado entre 2022 e 2023. Neto do ditador João Baptista Figueiredo, que morreu em 1999, ele foi um dos alvos da Operação Tempus Veritatis, que investiga a tentativa de arrematar um golpe de Estado no Brasil para manter Jair Bolsonaro na presidência.
A participação é bem documentada pela Polícia Federal: Figueiredo leu na rádio Jovem Pan o manifesto golpista de oficiais da ativa das Forças Armadas e usou a rádio para “denunciar” generais que não aderiram ao golpe.
Na conversa, Nunes admitiu a possibilidade de impeachment do ministro do STF Alexandre de Moraes e disse se arrepender de ter defendido a obrigatoriedade da vacina durante a pandemia. Defendendo criminosos, Nunes já havia dito que o 8 de janeiro não foi uma intentona golpista.
O curioso é que Marçal havia combinado uma conversa com o mesmo Figueiredo. Não aconteceu. A versão dos bolsonaristas é a de que Pablo disse preferir não falar sobre Alexandre de Moraes. O encontro minguou. Nunes, ao contrário de Marçal, fala.
Em quem serve a pecha de extremista?
Vira e mexe o candidato Guilherme Boulos (PSOL) precisa esclarecer os contos mentirosos sobre a sua história militante. Boulos, assim como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto não tomaram e não tomam a casa de ninguém. Lutam pelo combate à fome e por direitos essenciais que estão na Constituição Cidadã de 1988: a moradia digna e a função social da propriedade.
Para Guilherme Boulos ficar tão longe do centro quanto Ricardo Nunes de 2024, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto já teria que ter, no mínimo, tentado explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília na véspera de Natal, como fez o bolsonarismo em 2022. Ainda, tentado abolir violentamente o Estado de direito democrático em 8 de janeiro de 2023. Quem, então, está fora da lei?
Antes de o debate do Flow podcast começar, Nunes e Marçal bateram boca aos gritos. O evento terminou com socos e sangue arrancado da cara entre os assessores dos candidatos. Palavras que fomentam a violência são atos de violência. E o que mais assusta é que Ricardo Nunes e Pablo Marçal guardam traços de delinquência em comum. A diferença é de escândalo: em um caso, fraude que tirava dinheiro de aposentados; no outro, fraude com as creches. Pablo Marçal e Ricardo Nunes são dois esquisitos que se ajudam com seus extremismos ameaçando a democracia.
Rafael Pepe Romano é bacharel em Direito, graduando em Ciências Sociais na FFLCH-USP e educador popular no Cursinho da FFLCH.