Caminhos para efetivar o direito humano à comunicação
Especial Concentração da mídia e liberdade de expressão apresentou uma série de violações do direito à comunicação no Brasil em 2019. Recomendações ao Poder Público, setor privado e sociedade civil podem ajudar a garantir direitos e preservar a nossa frágil democracia
A existência de um ambiente de mídia independente e plural é fator essencial para o exercício da cidadania e para o desenvolvimento de um sistema político democrático. A pluralidade de meios de comunicação aliada à diversidade de vozes em circulação é indispensável para o acompanhamento e participação da sociedade na formulação de políticas públicas, para a visibilização das demandas das minorias e dos grupos historicamente silenciados e, em um cenário em que a desinformação tem causado tantos prejuízos, como na atual pandemia do Covid-19, para o pleno exercício do direito de acesso à informação e à liberdade de expressão, sem os quais os demais direitos sociais ficam comprometidos.
A frágil democracia brasileira, no entanto, sempre se deparou com esse desafio. Nosso sistema de mídia é caracterizado pela concentração histórica dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos econômicos, como mostra o Monitoramento da Propriedade da Mídia. A concentração, aliada à falta de regulação e de transparência, tem como consequências interferências econômicas, políticas e religiosas na condução do debate público. A popularização da internet não melhorou esse cenário: o poder das grandes plataformas digitais em determinar a circulação de conteúdo trouxe novos problemas, como aponta a pesquisa Monopólios Digitais: concentração e diversidade online.
O contexto atual torna a situação mais grave. Se já amargávamos a ausência ou fragilidade de regulamentações que pudessem enfrentar os monopólios privados da mídia e seus interesses, vivemos nos últimos anos um ataque direto promovido pelo Estado à mídia existente. Essa é a característica mais marcante do cenário das comunicações no Brasil em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, como mostrou este especial Concentração da Mídia e Liberdade de Expressão, que disseminou os resultados do Relatório Direito à Comunicação no Brasil 2019, produzido pelo Intervozes.
Muitos dos ataques partiram do próprio presidente da República e seus aliados, que instituíram no governo práticas que já vinham sendo adotadas desde as eleições de 2018. Em termos de apoio financeiro, o governo passou a privilegiar grupos de comunicação aliados na distribuição de verbas publicitárias, como Record e SBT, enquanto diminuiu as verbas de grupos que fazem qualquer questionamento ao governo, como Globo e Folha de S. Paulo. Mais grave, o presidente, seus filhos e apoiadores continuaram atacando jornalistas, sobretudo mulheres, em coletivas de imprensa e em suas redes sociais, estimulando ataques de ódio e até mesmo ameaças de morte por parte de seus seguidores.
Mesmo tendo sido denunciado na 175a Audiência Temática da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, realizada em março de 2020, no Haiti, o presidente manteve os ataques à imprensa e aos comunicadores em 2020. A postura de Bolsonaro estimula atos violentos, como o que aconteceu em 3 de maio, quando ao menos dois jornalistas, um fotógrafo e um motorista do jornal O Estado de S. Paulo foram agredidos física e verbalmente com chutes, socos e insultos por parte de um grupo que manifestava apoio ao presidente, também presente no evento, em Brasília. O ato incluiu a defesa de pautas antidemocráticas e inconstitucionais, como o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF).
Outro pilar da liberdade de expressão, a cultura também foi atingida em 2019. O governo promoveu ataques à classe artística, disseminou desinformação sobre políticas públicas para o setor, como a Lei Rouanet, e censurou a produção artística por meio de nomeações a cargos públicos, cortes de verbas para fomento e mesmo censura direta a obras em editais públicos, sobretudo às de temática LGBTQI+ e sobre autoritarismo.
Enquanto atacava a mídia e os comunicadores e promovia o desmonte e aparelhamento da comunicação pública, o governo implementou a estratégia adotada durante a campanha presidencial de 2018: a disseminação de desinformação por meio de redes sociais e dos canais oficiais de comunicação, o que atenta diretamente contra pilares da democracia, como a transparência e o direito de acesso à informação sobre os atos do governo e da administração pública. Os alvos de desinformação foram muitos: o Programa Mais Médicos, as universidades públicas, o ensino das questões de gênero nas escolas. Em 2020, a prática de disseminação de desinformação e uso dos canais oficiais para proselitismo pessoal continua e tem causado prejuízos à saúde pública durante a pandemia da Covid-19.
Violações às legislações brasileiras e tratados internacionais
A situação narrada acima constitui uma série de violações a legislações brasileiras e a tratados internacionais. Com base nos documentos internacionais sobre liberdade de expressão, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) publicou, em junho de 2019, um conjunto de recomendações a representantes públicos que orientam, entre outras coisas, que representantes do Estado “reconheçam constante, explícita e publicamente a legitimidade e o valor do jornalismo e da comunicação, mesmo em situações em que a informação divulgada possa ser crítica ou inconveniente aos interesses dos governo” e que “jamais sejam agentes diretos ou promovam violações ao direito à liberdade de expressão, incitem discriminações ou criem ambientes que conduzam à violência contra comunicadores, seja física, verbal ou na esfera digital”. Tais recomendações constam de uma cartilha publicada pelo governo de Michel Temer em 2018 e relançada pelo próprio governo Bolsonaro em março deste ano.
Também os Códigos Civil (Lei nº 10.406/2002) e Penal (Lei nº 2.848/1940) estabelecem regras para coibir crimes como os de calúnia, injúria e difamação, que podem ser praticados por meio da mídia em casos de abuso no exercício da liberdade de expressão. Ainda se aplicam à comunicação a Lei Lola (Lei nº 13.642/2018), sobre crimes de ódio e aversão às mulheres praticados pela internet; e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica); e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, os quais criam obrigações em relação à garantia do direito à liberdade de expressão.
O aparelhamento da comunicação pública também viola a Constituição Federal e a lei que criou a Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Nos últimos anos, segue em curso no país um processo de fragilização das comunicações pública e comunitária, o que prejudica a complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal estabelecida pela Constituição Federal de 1988. E o uso político das emissoras públicas fere a Lei Federal 11.652/2008, que regula a EBC e veda “qualquer forma de proselitismo na programação das emissoras públicas de radiodifusão” (parágrafo 1º, artigo 3º), além de estabelecer que não deve haver discriminação religiosa, político partidária, filosófica, étnica, de gênero ou de orientação sexual na TV pública (artigo 2º).
Por uma regulação democrática das comunicações
A situação atual do sistema de mídia no Brasil é fruto de uma regulação insuficiente e ineficaz. A Constituição Federal de 1988, que garante a liberdade de expressão como direito fundamental, tem seu quinto capítulo dedicado especialmente à Comunicação Social. Entre as leis que regulam o setor, podem ser citados ainda o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117/1962); o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (Decreto nº 52.795/1963); a Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/1997) – alterada em 2019 pelo Projeto de Lei Complementar nº 79/2016, que flexibiliza regras a favor das empresas, retira obrigações das concessionárias e repassa bens públicos da União aos empresários; a Lei nº 9.612/1998, sobre a radiodifusão comunitária; o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014); a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018), que ainda não entrou em vigor, e a Lei nº 13.853/2019, que cria a Autoridade Nacional de Proteção de Dados.
Além da Constituição e das leis específicas de cada setor, citadas anteriormente, existem no país diversas outras normas que também incidem sobre a regulação da mídia e das telecomunicações. Embora não tenham sido criadas exclusivamente para este fim, apresentam dispositivos legais que limitam potenciais abusos ou violações em temos de conteúdo. Entre elas, cabe destacar o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), que trata da classificação indicativa, a Lei Caó (Lei nº 7.716/1989) e o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), que tipificam o crime de racismo e estabelecem sanções maiores quando este é cometido pelos meios de comunicação.
Apesar do vasto arcabouço legal relacionado ao direito à comunicação, a sua efetivação continua sendo um desafio no Brasil, como demonstram os textos apresentados neste especial. Os marcos legais sobre telecomunicações e radiodifusão estão desatualizados em relação às garantias constitucionais, às demandas sociais e aos avanços tecnológicos, enquanto a legislação relativa a conteúdos é dispersa e precária. A violação a direitos humanos por programas policialescos mantidos na grade de programação de emissoras que se beneficiam de concessões públicas é uma demonstração dessa fragilidade legal.
Soma-se a este quadro a necessidade de se encontrar soluções regulatórias para os desafios impostos pelo ambiente digital em um cenário de convergência tecnológica. O Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais representam avanços, mas questões relacionadas a conteúdos compartilhados na internet e à vigilância estatal ainda carecem de maior aprofundamento. Assim como carecem de soluções as situações causadas pela crescente disseminação de discursos de ódio, os ataques a comunicadores e jornalistas e a disseminação deliberada de desinformação, elevada em 2019 à condição de estratégia de governo.
Tendo em vista esse cenário e com base no diagnóstico de violações no Brasil no ano de 2019, o Intervozes elaborou um conjunto de recomendações para efetivação e garantia do direito à comunicação no país. Algumas das demandas vêm de longa data.
Na radiodifusão, no que se refere à propriedade dos meios, recomenda-se que o Estado aprove uma nova legislação para o setor de radiodifusão que limite o número de concessões por grupos econômicos e impeça a propriedade cruzada dos meios, instituindo também a separação da infraestrutura de transporte do sinal e as atividades de programação. Também recomenda-se ao Estado brasileiro que dê fim aos arrendamentos e transferência de outorgas de radiodifusão, incluindo as que envolvem igrejas e os chamados “supermercados eletrônicos” e que cumpra com a garantia da vedação constitucional de que políticos em exercício de mandato sejam concessionários de serviços de radiodifusão (Art. 54 da Constituição Federal) e inclua na legislação a vedação também a seus familiares.
Em relação ao conteúdo, recomenda-se que os órgãos competentes fiscalizem a programação das emissoras de rádio e TV, a começar pelos chamados “policialescos”, por reconhecidamente violarem direitos e previsões legais, e apliquem as sanções administrativas cabíveis, cobrando responsabilização e estimulando mudança de práticas. Outra forma de coibir as violações seria a proibição de que órgãos públicos municipais, estaduais e federais, bem como as empresas e autarquias a esses ligados, veiculem publicidade institucional ou de utilidade pública em programas que violem direitos humanos. Nesse sentido, em junho de 2019, o Intervozes, junto com Instituto Alana, ANDI e Artigo 19, enviou à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão uma representação pedindo providências contra órgãos do poder público que anunciam nos chamados programas policialescos.
Sobre a publicidade oficial, é importante destacar também a necessidade de se estabelecer mecanismos democráticos para o investimento em publicidade nos meios de comunicação, como forma de garantir uma distribuição de recursos que não tome as medidas de audiência e de alcance como único critério, permitindo o investimento também em pequenos veículos, e mecanismos de transparência para impedir o uso político dos recursos.
No que se refere à internet, recomenda-se aos órgãos competentes que fiscalizem e responsabilizem agentes públicos que promovam campanhas de ódio por meio de seus canais institucionais ou pessoais na internet.
Em relação ao papel dos agentes privados, como as grandes plataformas digitais, recomenda-se às empresas de internet maior transparência em relação à discriminação de conteúdos publicados em redes sociais e a seus mecanismos de regulação de discurso.
Nesse sentido, o Intervozes, em parceria com outras entidades latino-americanas como Observacom, Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) e Desarollo Digital, elaborou um documento que inclui recomendações sobre princípios, padrões e medidas específicas para estabelecer formas de corregulação e de regulação pública que limitem o poder das grandes plataformas digitais (tais como redes sociais e mecanismos de busca) para proteger a liberdade de expressão de seus usuários e garantir uma internet livre e aberta. Isso se justifica dada a crescente intervenção desses intermediários no conteúdo online, através da adoção de termos de serviço e aplicação de políticas empresariais de moderação que se tornaram formas de regulação privada de espaços públicos que hoje são vitais para a deliberação democrática e o exercício dos direitos fundamentais.
Em relação ao combate à desinformação, é preciso agir em diversas frentes, sem colocar em risco o direito ao acesso à informação, à liberdade de expressão, à privacidade e ao devido processo legal, bem como assegurar a adequada punição a infrações e crimes, e promover também o direito à reparação. A Lei Geral de Proteção de Dados e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados também têm um papel fundamental nesse enfrentamento, uma vez que boa parte da operação de distribuição massiva de desinformação está assentada no uso de dados pessoais.
Dessa forma, é importante proteger os dados pessoais e fiscalizar seu uso, punir o uso artificial e industrial de plataformas de mensageria instantânea, estabelecer mecanismo para direitos de resposta que sejam rápidos e proporcionais, vedar o impulsionamento pago de campanhas eleitorais online e exigir transparência das plataformas digitais em relação ao funcionamento de seus algoritmos e autonomia dos usuários para sua utilização. Medidas de promoção de maior acesso e pluralidade também são benéficas, como a quebra dos monopólios e oligopólios digitais, a garantia do acesso universal e integral à internet, incentivos ao jornalismo responsável, plural e diverso e a promoção de educação para a mídia.
No que se refere à comunicação pública e comunitária, recomenda-se ao Estado brasileiro que garanta a operação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) como empresa pública, com orçamento adequado e respeito às estruturas de gestão que viabilizem sua independência e autonomia governamental. Também recomenda-se ao Estado brasileiro a revogação da Lei nº 13.417/2017, que modificou a Lei nº 11.652/2008, sobre a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), de modo a garantir que a população tenha acesso ao sistema público de comunicação, conforme previsto no art. 223 da Constituição Federal. Recomenda-se ainda a revogação da Portaria-Presidente nº 216/2019, publicada pelo presidente da EBC, que extingue a NBR e altera o caráter público da TV Brasil, tornando-a um canal de publicidade dos atos do Executivo.
Para o incentivo às rádios comunitárias, recomenda-se a reforma da Lei nº 9.612/1998, a partir de amplas consultas às rádios comunitárias, visando principalmente à redução das barreiras para funcionamento das mesmas e a ampliação dos mecanismos de fomento e fortalecimento. Recomenda-se também ao Estado brasileiro apoiar as rádios comunitárias, com a criação de um fundo para distribuição de verbas destinadas a dar suporte à estruturação, apoio técnico, capacitação e investimento em equipamentos e manutenção.
No que se refere à liberdade de expressão, recomenda-se ao Estado brasileiro que respeite as obrigações internacionais de direitos humanos determinadas nos tratados dos quais é signatário e garanta a efetividade dos dispositivos previstos no artigo 5º da Constituição Federal, que dizem respeito ao direito à livre manifestação e associação. O Estado também tem o dever de investigar e punir os responsáveis por casos de violência e perseguição a comunicadores e defensores de direitos humanos, assim como oferecer proteção imediata às vítimas de ameaças, mantendo e fortalecendo os programas de proteção a defensores.
Gyssele Mendes é jornalista, mestra em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e coordenadora do Intervozes. Olívia Bandeira é jornalista, doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do Intervozes. Ramênia Vieira é jornalista, especialista em Gestão de Políticas Públicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e integrante do Intervozes.