O discurso político de Boulos: refundar a democracia brasileira.
No quinto texto da série A análise dos discursos dos candidatos, produzida pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), os discursos da presidenciável Guilherme Boulos: A fala de Boulos é clara, procurando fazer que sua análise intelectual e sua emoção de militante dialoguem com a linguagem do povo, os seus desejos e necessidades. Para isso, parece inspirar-se no discurso do “jovem Lula”. Porém, com a diferença de que apesar do esforço, o estilo didático faz com que os ouvintes o identifiquem mais como professor do que com um líder popular sindical.
Guilherme Boulos, homem, branco, 36 anos, nascido em São Paulo, formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e um dos fundadores da frente Povo Sem Medo. Ele é o mais jovem dos candidatos à Presidência da República, que disputa pela primeira vez, pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em coligação com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Sua candidatura tem Sônia Guajajara como vice-presidente (ou “co-presidenta”, segundo sua denominação neste discurso político), primeira indígena a disputar a chapa majoritária de presidência e vice em 518 anos. A candidatura de Boulos e Sônia se apresenta como um projeto que vai “além da próxima eleição”: é um projeto que visa “construir uma nova força política” com um “novo sujeito”, em formação.
O Manifesto “Vamos, sem medo, com Guilherme Boulos Presidente!”[1], apresenta a aliança entre PSOL e MTST nas eleições de 2018 como uma possibilidade de construir um campo político comprometido com os interesses “dos de baixo” e o enfrentamento dos “privilégios da elite”. Boulos, pela “ousadia própria de sua juventude”, “inspira confiança” e “já demonstrou inúmeras vezes a radicalidade necessária para enfrentar os poderosos”, sendo, por isso, um símbolo dessa aliança. “Política pra mim não é carreira, política pra mim é desafio e ousar. Só faz sentido ser candidato à Presidência da República no Brasil se for pra … defender a maioria do povo brasileiro. Nós queremos governar para os 99%, não para 1%”, afirma o candidato em entrevista ao programa Roda Viva, realizada no dia 07/05/2018[2], destacando a militância como elemento distintivo de sua identidade.
No marco do diagnóstico[3] do discurso[4] de Boulos, a desigualdade social aparece como principal problema do país, o que “exige um Estado que combata os privilégios e crie igualdade de oportunidades para o seu povo”. O enfrentamento desta questão requer superar a “crise política” que nós vivenciamos, expressa na “crise de representação” e resultante de um “sistema político que serve a 1% da população”, às “oligarquias” e aos “bancos”, que controlam e financiam as campanhas eleitorais. O ponto nodal de sua proposta, ou seja, o elemento que articula as diferentes demandas de seu discurso é “refundar a democracia brasileira”, o que exige “ouvir o povo”, “acabar com o abismo entre Brasília e Brasil”, “aproximar o poder das pessoas”, afinal, “é de baixo pra cima que nós vamos mudar a política no Brasil”.
No marco do prognóstico, se explicita como solução do problema que, para “refundar a democracia brasileira” e “enfrentar a desigualdade social” é preciso “colocar o dedo na ferida”, traçando ao mesmo tempo a fronteira que delimita os outros, o Eles do Nós. Embora o discurso de Boulos destaque que “diferença não pode se transformar em antagonismo”, é possível delimitar claramente quem se encontra do outro lado da fronteira e que faz parte do Eles: o MDB e as “máfias do Congresso Nacional”; “oligarquias” e “elites”; o “sistema financeiro” e a “república dos bancos”; os “fundamentalismos”; o “monopólio privado da mídia”; as “grandes corporações”; o “agronegócio”, sua “bancada ruralista” com seus “venenos transgênicos” e a “devastação ambiental”; isto é, as elites e os que defendem os interesses do “1%”.
A oposição ao Eles permite reconfigurar quem faz parte ou espera-se que venha a fazer parte do Nós, dos apoiadores, dos eleitores da candidatura. Uma “aliança que representa a diversidade do povo brasileiro”. Por exemplo, “PSOL”, “PCB”, “Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB”), “Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST)”, coletivos “feministas”, “LBGTs”, “movimento negro”, outros grupos “identitários”, “agricultores familiares” e “agroecológicos”, “Mídia Ninja”, artistas e intelectuais “críticos”, a sociedade organizada; isto é, “os 99%”. Um Nós que se organiza a partir de uma cadeia de equivalência representada pela “diversidade”, “esperança”, “democracia”, “justiça”, “legalidade” e “liberdade”.
No marco motivacional, se reafirma a moralização (ou ideologização) da fronteira, entre o Nós o povo, as maiorias, o 99%, ou seja, o bem; e o Eles, as “elites”,
“oligarquias”, “fundamentalistas”, o 1%, os que simbolizam o mal. Nesse mesmo marco também se identificam as referências ao passado histórico que fundamentam e legitimam sua candidatura. O discurso de Boulos procura inspiração no comício da Central do Brasil com as propostas de reformas de base e também na ampla e multifacetada resistência social. Criticamente se destaca que “o golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016 nos remeteu ao processo de desnacionalização iniciado na década de 90, aprofundou as desigualdades sociais, o medo e a desesperança no Brasil. Essa ofensiva liberal visou desmontar o Estado e precarizar direitos”. Por sua vez, a defesa do Lula Livre não impede que seu discurso lembre criticamente a agenda recessiva do PT resultado “da infrutífera tentativa de conciliar os interesses dos trabalhadores e da Casa Grande”. Conforme aparece no manifesto da candidatura de Boulos, a própria história do PSOL é relembrada como um símbolo da rejeição à política do PT: “o PSOL nasceu da ousadia daqueles que não aceitaram os limites impostos por um regime político apodrecido. Nasceu buscando superar os limites do PT e seu projeto de conciliação de classes, e assim permaneceu como um polo de resistência da esquerda no parlamento e nas lutas. Esse é nosso DNA.”
O último componente do marco motivacional é sua proposta de governo expresso em seu programa político anti-establishment com dois eixos ordenadores: a “luta contra a desigualdade” e a “democratização do poder político”. Aqui o discurso ressalta que para combater os privilégios é fundamental a ampliação da noção de democracia, sem restringi-la ao voto; é necessário fazer “política com esperança, sem medo, ouvindo as pessoas”. “Ouvir a população” é a primeira medida que Boulos pretende tomar se for eleito presidente, com a realização de um “plebiscito” para consultar a população sobre a manutenção ou revogação das medidas do governo ilegítimo de Michel Temer. O programa de governo “anti-sistêmico, popular, radical e que combata o conservadorismo” intitulado “Vamos sem medo de mudar o Brasil” tem como uma de suas medidas principais “acabar com a República dos bancos”, propondo a regulação do sistema financeiro, afinal, “a economia tem que servir à sociedade e não a sociedade à economia”. Afirma que é preciso “conter a volatilidade do dólar” e os “mecanismos que geram inflação”, sendo fundamental o “controle social” sobre a execução da política econômica do país.
Também em sua proposta se afirma que a “crise política” que atinge o país só poderá ser resolvida a partir da realização de uma profunda “reforma política”, que democratize o sistema político. Uma medida fundamental para combater os privilégios é a realização de uma “reforma tributária progressiva”, com taxação de grandes fortunas, lucros e dividendos. O déficit na Previdência não poderá ser resolvido atacando os direitos dos trabalhadores, mas sim os “privilégios” de alguns setores, como o das Forças Armadas. A proposta é de um “sistema previdenciário único”, financiado por empregadores, trabalhadores e governo. O programa da candidatura destaca que essas medidas possibilitarão realizar investimentos em setores como saúde e educação e ataca o Estado mínimo: o Estado deve ser “do tamanho das necessidades da população”, “temos uma imensa carência de serviços públicos, como saúde, educação, segurança, além de uma imensa carência de infraestrutura social e urbana. Nossas grandes cidades são caóticas, com falta de moradia, saneamento e transporte”, ressalta[5].
No seu discurso, expresso no programa político, Boulos propõe ainda “enfrentar a especulação imobiliária” e pretende fazer cumprir a “função social” dos imóveis, garantida na Constituição Federal de 1988, promovendo a “desapropriação” e “requalificação de imóveis” abandonados para moradia popular nas regiões centrais, não apenas periféricas. Aparecem também em seu programa retomar a “demarcação de terras indígenas e quilombolas”, promover a “desapropriação de terras”, “reconstruir” a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e fornecer “crédito para a reforma agrária”. Em suas propostas políticas destaca-se também a “defesa dos direitos das mulheres”, desde a equiparação salarial até o debate sobre o aborto, tema que “deve ser visto sem tabus”, mas como “problemática de saúde pública”. Considera que é fundamental promover maior “transparência” e aumentar representatividade de mulheres, negros e negras na política, sendo um desafio “eleger bancadas” que mostrem a “diversidade” da população brasileira, além de políticas de “enfrentamento ao genocídio” da população negra, por meio de medidas de segurança pública que passam pela “desmilitarização” do modelo como proposto pelo Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 51.
A fala de Boulos é clara, procurando fazer que sua análise intelectual e sua emoção de militante dialoguem com a linguagem do povo, os seus desejos e necessidades. Para isso, parece inspirar-se no discurso do “jovem Lula”. Porém, com a diferença de que apesar do esforço, o estilo didático faz com que os ouvintes o identifiquem mais como professor do que com um líder popular sindical.
A candidatura de Boulos conta com o apoio de alguns “órfãos do PT” e de Marina Silva. Artistas como Sônia Braga, Letícia Sabatella, Wagner Moura, Paulo Betti, Gregório Duvivier, Laerte Coutinho e intelectuais como Chico Oliveira, Vladimir Safatle, Eduardo Viveiros de Castro e Frei Betto são alguns dos nomes que assinam o Manifesto “Vamos, sem medo, com Guilherme Boulos Presidente!”. Apesar destes apoios assim como de diversos movimentos sociais, a candidatura de Boulos tem 1% das intenções de votos. Segundo pesquisa do Ibope datada de 11 de setembro de 2018, Boulos tem 11% de rejeição, um dos índices mais baixos, quando comparado aos principais candidatos. O discurso político de sua candidatura tem conseguido mais eco predominantemente entre: os homens; de raça preta ou parda; católicos; que habitam as regiões Sudeste e Nordeste; compreendidos entre duas faixas etárias:16-24 e 35-44 anos; duas faixas de escolaridade: até quarta série e com ensino superior; e também entre duas faixas de renda: até 1 e entre 2 e 5 salários mínimos[6].
Os opositores a Boulos o criticam por sua “juventude” e “falta de experiência” em cargos públicos, além de seu “engajamento” e “militância”, objeto das críticas mais ásperas: “de notório promotor da violência e do confronto, agora brinca de ser o todo-puro do jogo político”. Por outro lado, quando questionado pelo fato de ser do MTST, mas proveniente da classe média, Boulos afirma que “não precisa ser sem teto pra tá junto numa causa tão justa e legítima” e sugere que a desconfiança para com a solidariedade é sinal da “crise ética” que estamos vivendo. Além disso, Boulos destaca que “o movimento dá mais do que uma casa, o movimento dá esperança”, portanto, o envolvimento que gera não se limita a questões materiais.
As críticas a Boulos também vêm do próprio PSOL. Alguns setores falam em um “problema Boulos” e na “vergonha” de sua candidatura, criticando a sua aproximação com o “campo político de Lula” e deixando o PSOL como “linha auxiliar” do PT. Para esses críticos, que relembram o surgimento do próprio partido como dissidência do PT, Boulos não seria um candidato de esquerda radical e sua candidatura “não expressa o espírito do PSOL”, ao contrário de possíveis candidaturas do seu quadro histórico como a de Plínio de Arruda Sampaio Jr., o que sinaliza um possível racha interno. Já para outros setores, a aliança entre Boulos e o PSOL “pode apontar para um novo ciclo na esquerda, cuja marca seria o combate sem tréguas àqueles que promoveram o golpe e hoje destroem as conquistas do povo brasileiro. Esse é o nosso desafio”[7].
Ao afirmar que “é de baixo pra cima que nós vamos mudar a política no Brasil”, o discurso da candidatura de Boulos e Sônia parece indicar que esse projeto não se resolve nos embates internos do partido nem se resume à disputa das eleições de 2018. A implementação deste programa político necessita da “construção de outro projeto de poder cujo princípio seja a radicalização da democracia e da participação popular na busca de outro modelo de sociedade”.
ESPECIAL
Este texto faz parte da série especial “A ANÁLISE DE DISCURSO DOS CANDIDATOS”. Entre os discursos examinados estão os das candidaturas Marina Silva, Jair Bolsonaro, Lula, Geraldo Alckmin, Ciro Gomes e Guilherme Boulos.
Confira também:
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*Yamira R. de Souza Barbosa, Paulo A. A. Balthazar, Jorge O. Romano, Alex L. B. Vargas, Annagesse de Carvalho Feitosa e Thais P. Bittencourt. Os autores – professor, doutorandos e mestrandos – conformaram no CPDA/UFRRJ um grupo de reflexão sobre análise de discurso populista fundado na proposta de Laclau e Mouffe, coordenado pelo Dr. Jorge O. Romano, do qual saíram textos específicos sobre o discurso de seis candidatos a presidência que estão sendo publicados no Le Monde Diplomatique Brasil online, assim como um artigo com a visão geral dos resultados alcançados, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil na sua edição de Setembro de 2018