Por que Feminismos Transnacionais? Fechamento de nove meses do especial
O feminismo transnacional é um conceito que movimenta a esfera de uma globalização contra hegemônica, que dialoga com a transnacionalização
“Precisamos não de uma nova perspectiva no feminismo, mas de uma frente ampla de várias perspectivas que possam produzir críticas ao status quo”.
Esse é um trecho do e-mail de Mary Garcia Castro para Heloisa Buarque de Hollanda, publicado no livro “Pensamento Feminista Hoje: perspectivas decoloniais”[1]. A troca de cartas virtuais das duas demonstra a vívida reflexão entre pesquisadoras de gênero diante dos novos caminhos que o feminismo abre, nos deixando em constante questionamento. Recuperamos e abrimos nosso texto com essa frase porque, assim como exposto nos e-mails delas, o Especial “Feminismos Transnacionais” nasceu da inquietação e do incômodo. Ascendeu por um impulso e por angústias pessoais e políticas, reiterando que “o pessoal é político”.
Nos identificamos com Heloisa e Mary no nascimento do Especial por nos tratarmos de duas mulheres e pesquisadoras – uma antropóloga e uma internacionalista – com os marcos teóricos de nossas trajetórias a se confundir com os de outras mulheres, em realidades que nos conectavam em suas distâncias. Talvez fossem as próprias fronteiras geográficas e analíticas dos tipos de feminismos que nos levou a querer falar em termos do prefixo “trans”, que significa e indica algo que está “através”; “além de…”
Nesse caso, o feminismo transnacional é um conceito que movimenta a esfera de uma globalização contra hegemônica, que dialoga com a transnacionalização, no debate que Nancy Fraser chama de “o social”[2]. Para ela, embora a globalização tenha permitido outras manifestações de engajamento feminista, a exclusão inerente aos processos dessa globalização motivou o surgimento dos movimentos feministas transnacionais, contra novos modos de opressão transnacionalizadas. Essa perspectiva surgiu da intenção de um feminismo que transpõe divisões nacionais, linguísticas, culturais, de classe, de raça, de comunidade (urbana ou rural). Transnacional se expressa, também, na ideia da geógrafa Doreen Massey[3], pela visibilização de lugares como constituídos por sua diversificada rede de laços com outros lugares, próximos ou distantes.
Por essas razões, assim nomeamos esse especial, acreditando que nossas categorias não podem nos aprisionar. Pensamos numa conjunção de mulheres a parir uma constelação de textos, nas narrativas de suas realidades. O dossiê destacou àquelas que não alcançávamos, que não poderíamos falar nem a partir de nossas leituras, principalmente de nossos corpos. Optamos por uma unidade de matérias que conversasse por uma linha que não trouxesse um novo feminismo, mas que pusesse mulheridades desconhecidas entre si, e por nós. Assim, organizamos uma forma de verbalizar feminismos no plural e na constante expansão de fronteiras. Acreditamos em feminismos inscritos em suas possibilidades ao entender como mulheres, em suas diferenças culturais e regionais, expressam e fazem seus direitos acontecerem.
Não podemos ignorar que o Especial acompanhou todo o ano de 2020, marcado pela maior pandemia que nossa geração pode presenciar. A Covid-19 escancarou emblemas dramáticos de nossa desigualdade e o aumento da violência contra a mulher foi um dos que mais gritou, na necessidade de atenção e mudança[4]. A pandemia trouxe giros no campo social que pegaram comunidades científicas, artísticas, militantes de surpresa. Tivemos que repensar formas de viver, de se expressar e contestar, modos de pensar e apresentar. Nesse contexto, todos os textos publicados refletiram suas temáticas as relacionando com a mudança contextual que a Covid-19 trouxe. Por outro lado, não teríamos como deixar de mencionar que o especial deu ao ano uma força e sustentação necessária para seguirmos com um pouco mais de esperança.
Não à toa, ele finaliza após nove meses, sendo esse o texto de número 40. Nove meses de “Feminismos Transnacionais”, distribuídos em 40 semanas é simbólico no que representa os ciclos de boa parte[5] das mulheres. Nesses meses, ele foi dividido em sete ciclos, compostos por:
Ciclo Representatividade Política e Resistências Femininas
Ciclo Mulheres, Ciência e Trabalho
Ciclo Gênero e Raça
Ciclo Arte e Feminismos
Ciclo Drogas e Gênero
Ciclo Maternagens
Ciclo Mulheres Indígenas, Ruralidades e Interior Brasileiro
O especial iniciou com algumas questões disruptivas. O primeiro texto trouxe a posição da mulher na política internacional, ao discutir de que modo podemos reaver a sub-representação feminina nos processos políticos. Seguido de intensas problematizações sobre os avessos e consequências das colonialidades, pela realidade das mulheres palestinas e israelenses, das mulheres moçambicanas na luta pela independência e das mulheres curdas. Pois, se daqui gritamos que a “América Latina vai ser toda feminista”, que vejamos também como as mulheres árabes constroem e desenham seus feminismos cotidianos, tão distantes e próximas a nós. Esses textos nos remetem ao que a antropóloga Lila Abu-Lughod[6] nos alertou sobre os “perigos da cultura de reificação, aparente nas tendências de afixar ícones culturais claros como as mulheres muçulmanas sobre confusas dinâmicas históricas e políticas” e do risco de “não cair em polarizações que colocam o feminismo do lado do Ocidente”.
E quando abarcamos a interssecionalidade nas pautas feministas aprendemos sobre as resistências nas pautas climáticas, ciências e tecnológicas, jurídicas e na saúde. Dessa forma, o que interliga programas internacionais, órgãos oficiais, como a ONU, às subjetividades das mulheres na África, na Ásia ou no Brasil? E entre as mulheres indígenas, as que estão no interior do interior brasileiro, àquelas que vivem a ancestralidade em seus cotidianos? O que partilham sobre suas representações tanto mulheres encarceradas quanto as que estão em altos postos de carreira, como as diplomatas? O que isso afeta na representatividade política de mulheres? E como ela pode se tornar presente frente ao tráfico sexual de mulheres e ao corpo feminino, que revela os feminismos em seus limites corporais? Que representatividades se tecem entre mulheres negras, LGBTQIA+ ou as campesinas que lavram nossa terra? Como suas vozes são traduzidas em línguas, idiomas e culturas? Ou ainda, como corporificam em vozes e silêncios sonoros suas dores em arte e na dramaturgia?
Sabemos que as temáticas dos ciclos, assim como os textos do dossiê não representam a totalidade de um universo teórico, artístico, ativista dos feminismos. Nosso intuito foi apresentar uma forma de “para início de conversa”, na espera de uma visão emergente e contemporânea no compartilhamento de saberes.
Conversas sobre gênero entre uma antropóloga e uma internacionalista
Liz
Cheguei na casa da Bia à noite. Tinha acabado de sair do trabalho, com a ansiedade batendo forte. Havia defendido minha dissertação de mestrado em 2019, tratei da transversalização das pautas de gênero na Agenda de Desenvolvimento da ONU (Agenda 2030) e uma das minhas maiores crises de ansiedade era, justamente, pensar no que fazer com esse título. Refletia que, dentro das Relações Internacionais, o feminismo ainda estava avançando devagar. Existe ainda, ausências no debate sobre gênero e raça na Ciência Política de forma geral, refletidas nas poucas disciplinas existentes sobre o tema nas grades acadêmicas dos cursos de Graduação e Pós-Graduação, poucos professores especialistas, poucas publicações em revistas brasileiras[7]. E essas ausências me causam angústia.
Eu perguntava a Bia: “como devolvemos esse conhecimento todo à comunidade a nossa volta de forma acessível? Devo encarar um doutorado? Será que vou encontrar meu espaço de luta e resistência dentro da academia?”. Somos condicionadas desde cedo à perfeição. Seja na beleza, nos estudos, nos relacionamentos e eu sentia que precisava ser perfeita no espaço que eu ocupava dentro da academia. Meus textos nunca estavam bons o suficiente. Meu ativismo não estava bom o suficiente e minha contribuição para o movimento feminista era pouca.
Na minha cabeça tudo isso era verdade. E eu perguntava a Bia, ‘será que só a gente vive com essas inseguranças? Como será que as mulheres de realidades diferentes das nossas, enxergam essas incertas, lutas e o feminismo no cotidiano? No trabalho?’
Juntas refletimos em como é difícil para uma mulher ter voz, se fazer ouvida, se sentir acolhida. Trocamos olhares depois de um breve silêncio, quando ela disse: “precisamos escrever sobre isso. Precisamos achar um espaço para escrever, aprender, ouvir e acolher”. E naquele momento nasceu o “Feminismos Transnacionais”. No plural.
Beatriz
Quando Liz me apresentou seus anseios e as ausências que encontrava entre os estudos de gênero e as relações internacionais, eu revisitei, como numa jornada interna, meus caminhos nas ciências sociais e minhas tentativas e insistências etnográficas. Vi como as vivências sobre gênero e feminismo faziam parte de um repertório de abandonos que se confundiam em meus receios e descobertas pessoais.
Há algum tempo um incômodo me acompanhava em minhas pesquisas, dizia respeito à minha relação de pesquisadora-mulher em espaços masculinos há mais de uma década. Algum afastamento voluntário, ou um medo inespecífico, me deslocava de uma reflexão que me incluía como parte implicada nas situações que analisava. O fato de ser mulher atravessava todos os acontecimentos e consequências: o eu-mulher-pesquisadora e como o gênero impactava meus percursos empíricos. Após um tempo, o alargamento de espaços, sujeitos e objetos me levou a realidades que me fizeram revisitar meus paradigmas feministas, que não podiam permanecer estanques.
Certa vez, numa pesquisa que realizava no presídio Talavera Bruce, vi que estar diante de mulheres que tinham suas maternagens institucionalizadas na prisão provocava um emaranhado em meus sentidos de alteridade. Apesar de ainda não ser mãe, eu sou mulher e a potencialidade e iminência da maternidade me é real, por isso, a dor das suas maternidades roubadas e retiradas passava a ser minha. Saía pensando que era mais difícil pesquisar mulheres porque ali me sentia eu, conseguia repercutir, em minha pele, os sofrimentos delas. Achava que o distanciamento analítico me seria roubado pelo envolvimento, quase corpóreo e – até então – considerado incontrolável por mim.
Continuei pesquisando somente instituições masculinas. Também segui lendo mais e mais livros feministas. Quando achava que tinha dado alguns passos em relação à base teórica do feminismo, a realidade bateu à minha porta como etnografia e retornou em experiência. Encontrar serviços de cuidado a usuárias e usuários de drogas, que se relacionavam com cenas de uso de crack no Rio de Janeiro, me mostrava novas faces da violência. Assim como outras formas de ser mulher nas necessidades cotidianas. Daquelas que confundem Estado, tráfico, política, polícia, saúde, assistência, todas “ao mesmo tempo agora” agindo no corpo-mulher.
Me perguntava e observava como elas recebiam e construíam seus planos de emergência, suas fugas emergentes e suas urgências para sobreviver a tantas gerências em cima delas. Como se defender dentro de sua solidão incorpórea, num roteiro de violências plurais que incidiam sobre suas vidas? O fato é que tais abusos suplantavam, e eram mais plurais, do que as teorias feministas que construímos. Outras pesquisas, em estados diferentes, também evidenciaram essa face violenta que leva mulheres para as ruas e para as drogas. Como a de Luana Malheiro, em Salvador, mostrando que a violência racial e de gênero age como porta de entrada de uso para o crack. Para elaborar a violência brutal que sofre da polícia, do companheiro do tráfico, do companheiro de papelão faz o uso do crack. A violência que acontece o tempo todo com a mulher na rua, a Lei Maria da Penha não consegue conduzir.
Quais os caminhos devemos seguir para falar de violência doméstica a mulheres que diziam estar mais seguras com seus companheiros, que as coagiam cotidianamente? Eram eles que as protegiam de violências maiores e institucionalizadas, como a do Estado (na figura da polícia), da milícia e do tráfico. “Ao menos ali era somente um a me esculachar”, diziam. Numa entrevista, ouvi esse relato/desabafo de uma profissional de saúde.
Nossas pacientes sofrem violência o tempo todo praticamente. Às vezes eu tenho que entender que não tem como elas fazerem uma ruptura com o seu companheiro, que as maltratam, mas de alguma maneira as defende na rua. Ao mesmo tempo que é muito difícil para ela viver aquela situação ela também não pode fazer uma ruptura. Os teus discursos feministas daqui minha filha, são todos ressignificados. É muito difícil. Eu continuo sendo feminista, mas não dá não, amiga, não dá para você. A misoginia está aqui o tempo todo. Ao mesmo tempo você compreende todos os processos de violência por parte dos homens, todos os processos de violência que as mulheres passaram. E esses homens e essas mulheres estão juntos lá fora. Esses mundos colidem. E o meu feminismo não me ajuda em nada aqui.
Diante disso, me perguntava como colocar nossas teorias feministas em perspectiva de ação. Meus instrumentos eram muito poucos, eu trabalho com a palavra, é apenas o que possuo como forma de ação política efetiva. Era isso que compartilhávamos em angústia naquela noite – eu e Liz. Como conjugar tantas narrativas de sofrimento, aparentemente díspares, numa linha que categorias analíticas não dão conta? Nós não detínhamos muito poder para dar respostas à responsabilidade política dessa pergunta. Referenciando Heloisa Buarque de Hollanda, novamente no mesmo livro, “sem angústia ninguém é autoral”. Nossas angústias partilhadas decidiram chamar e evocar mulheres, conhecidas e desconhecidas por nós, para serem autoras. O Especial foi autoral porque se atravessou por angústias compartilhadas.
Por feminismos não silenciados
Há um silenciamento que percorre a história das vozes femininas. Silenciamento esse que fala pouco dos silêncios plurais das mulheres. O que guardam quando calam? O que evocam quando gritam? A sonoridade de suas dores está expressa em travessia no decorrer desse Especial, com textos que unem as trajetórias, escolhas e abandonos, que revelam as mortes simbólicas que mulheres são colocadas dentro da naturalização dos abusos sofridos, na vivência de violências nada hierárquicas.
Cada texto nos revela o que há de estético, ético, coletivo e individual, real e factível na vida de mulheres. Vemos o contorno político nas trajetórias individuais, e nas descobertas emancipatórias. Onde suas dissonâncias encontram simetrias nas violências exercidas contra as suas vozes. As diferenças entre mulheres são alçadas a um plano de alteridade quando se encontram juntas numa mesma travessia.
E queremos agradecer as nossas queridas autoras, protagonistas de sua própria história. Obrigada por abraçar a trajetória desse especial. Aprendemos muito com vocês. Aos nossos leitores, escrevemos saudosas e honradas. Vocês levaram nosso espaço de aprendizagem para outros campos, graças ao compartilhamento das matérias.
E por fim, citamos a bell hooks, pois acreditamos, assim como ela, que o feminismo é para todo mundo.[8]
Beatriz Brandão é cientista social e jornalista. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-RIO e pós-doutoranda em Sociologia pela USP. É especialista em políticas públicas, estudos diplomáticos e atua como pesquisadora do IPEA. Pesquisa temas transversais ao conflito e à arte na interface com drogas, refúgio e gênero.
Liz Cosmelli é internacionalista. Mestra em Análise e Gestão de Políticas Internacionais (MAPI) pela PUC-RIO. Pesquisadora de gênero, política e estudos feministas nas relações internacionais. Bolsista do Centro de Relações Internacionais e Saúde (CRIS) da Fiocruz. Integrou a pesquisa sobre normas sociais e exploração sexual infantil em três comunidades no Rio de Janeiro através do Instituto Promundo.
[1] HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Pensamento Feminista Hoje: Perspectivas Decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
[2] FRASER, Nancy..”Women, Welfare, and the Politics of Need Interpretation”. In: Unruly Practices: Power, Discourse and Gender in Contemporary Social Theory. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989.
[3] MASSEY, D. “A Global Sense of Place”. In: Space, Place, and Gender. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994.
[4] Tema de um dos nossos textos também: https://diplomatique.org.br/o-aumento-da-violencia-contra-a-mulher/
[5] Destacamos que sabemos que ciclos femininos se referem a mulheres com útero e que temos mulheres em outras representações, por isso nos referimos a mulheres com útero e sem útero dentro dessa categoria.
[6] ABU-LUGHOD, Lila. “As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus Outros”. Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 451-470, maio-agosto/2012.
[7] RACE AND RACISM IN INTERNATIONAL RELATIONS: Confronting the global colour line. Organizadores Alexander Anievas, Nivi Manchanda e Robbie Shilliam.
[8] Hooks, Bell. Feminism is for everybody: Passionate politics. Pluto Press, 2000.